Já num ensaio juvenil dedicado a Proust, a questão do tempo, esse "monstro de duas cabeças, danação e salvação", está no centro das preocupações de Samuel Beckett. O tempo e a maquinaria dos hábitos, este "Deus do embotamento" pelo qual os homens tentam anestesiar a dor de existir, ainda que ao preço de esquecerem também de si mesmos e do aqui-agora, em esperas ilusórias.
Vemos por aí como a montagem de "Esperando Godot" de Elias Andreato faz jus ao grande dramaturgo irlandês. Aproveitando o espaço cênico circular do Tucarena, o diretor transforma em "relógio" a estrada no campo indicada pelo texto original, terra de ninguém em que a dupla de andarilhos Vladimir e Estragon jogam conversa fora, falam de piadas, sonhos, Bíblia, fazem palhaçadas, cogitam até se matar, ou se separar, desistem e voltam, enquanto o misterioso personagem-título posterga, dia após dia, pelos recados que envia por meio do Menino (Guilherme Bueno), sua tão aguardada chegada.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Elias Andreato e Claudio Fontana em cena da peça |
Um relógio que, graças ao jogo das luzes, e ao movimento dos personagens, deixa de ser um adereço inerte para se revelar um mecanismo ativo, vivo, até mesmo protagonista: a "gaiola das horas" (outra expressão beckettiana) em que homens são marionetes que cantarolam formas de driblar o tédio e suportar a expectativa pelo encontro marcado, ou apenas alucinado, com aquele que enfim lhes propiciaria abrigo, comida, vida decente neste mundo hostil.
Andreato, no papel de Estragon, e Claudio Fontana, como Vladimir, reeditam a parceria que viveram recentemente em "Um Réquiem Para Antonio", sobre Mozart e Salieri. O entrosamento da dupla, a felicidade que se nota neles por estarem juntos em cena, é vital para que o tédio tematizado pela peça não a contaminasse, risco não pequeno em se tratando de uma história em que "nada acontece". Um texto que, obra-prima do teatro do absurdo, esvazia o sentido dos diálogos e subverte a própria ideia de drama como "ação", enredo com começo, meio e fim.
Embora por vezes bastante abreviado em relação ao texto de Beckett, o espetáculo não deixa de ser fiel ao seu espírito.
Eis uma virtude da peça, forte o bastante para atestar a atualidade da encenação de 1949, retrato agudo do lastro de perplexidade e desencanto deixado, como as ruínas e os mortos, pelas duas guerras mundiais, pelo Holocausto e pela bomba atômica.