Folha de S. Paulo


Diretor retrata utopia da vida comunal no semiautobiográfico 'A Comunidade'

O diretor dinamarquês Thomas Vinterberg diz gostar dos "elefantes na sala de estar". Em "Festa de Família" (1998), seu filme mais famoso, o animal incômodo era a revelação de um passado pedófilo jogado bem no colo do patriarca.

Em "A Comunidade", a tromba aflige outra família. Na verdade, um outro tipo de família: um grupo de pessoas sem qualquer tipo de vínculo prévio que resolvem viver sob o mesmo teto na Copenhague dos anos 1970. O filme, que estreou no Festival de Berlim, em fevereiro, chega ao Brasil nesta quinta (1º).

Com o longa, Vinterberg, 47, diz que quis saciar a curiosidade dos amigos que indagavam sobre como foi sua infância vivendo com os pais numa comunidade. "Eles tinham muitas perguntas, várias com teor sexual e imaginando pessoas pulando peladas em torno de fogueiras."

As fogueiras e a gente pelada até estão na trama, mas a vida comunitária retratada no filme está mais para uma república de bons samaritanos imbuídos do apego nórdico à coletividade do que para um recanto hippie de poliamor e liberdade sexual.

Erik (Ulrich Thomsen) e Anna (Trine Dyrholm) são um casal com uma filha adolescente a tiracolo que herdam um casarão. Um pouco por altruísmo bicho-grilo e um pouco para escapar à mediocridade da vida em uma família tradicional, optam por abrir a casa para conviver com outros desconhecidos.

Vão para lá um solteirão, um casal com o filho pequeno, um imigrante... As decisões são tomadas por voto.

Mas se a vida privada é devassada em nome do coletivo, os problemas íntimos começam a ser vividos num drama público. Vencedora do prêmio de melhor atriz em Berlim, Trine Dyrholm é a matriarca que agoniza publicamente quando seu casamento passa a sofrer abalos.

O filme também pode ser lido como metáfora do Estado do bem-estar social, que encontrou terreno fértil nos países escandinavos e hoje enfrenta críticas, agravadas com a crise dos refugiados.

"Queria que esse filme desse algumas lições às pessoas sobre dividir", disse o cineasta à Folha durante o festival de Berlim. No dia anterior, durante entrevista coletiva do filme, ele havia afirmado sentir "vergonha em ser dinamarquês" devido às políticas do governo de seu país, de apreender bens de valor de imigrantes vindos da Síria.

Vinterberg não considera que retrate uma fantasia irrealizável. "Não acho que tenha sido utopia. O filme mostra pessoas superando juntas problemas que não têm a ver com a vida na coletividade."

Os anos 1980, diz o diretor, tornaram as comunidades obsoletas e elas acabaram deturpadas em reality shows do porte de "Big Brother": "uma versão horrível, comercial, do que foi aquela experiência."

'DOGMA NUNCA MAIS'

Nos anos 1990, o diretor também teve a sua espécie de comunidade –uma de tipo cinematográfico. Ele e o conterrâneo Lars Von Trier são os criadores do Dogma 95, manifesto que prega um "voto de castidade" no cinema, destituído de efeitos especiais e outras trucagens, em oposição ao império dos estúdios dos filmes hollywoodianos.

"Festa de Família", de Vinterberg, foi o marco do movimento e seguia todos os seus nove mandamentos: câmera na mão, locação única, ausência de trilha sonora etc.

Hoje "Dogma nunca mais", diz Vinterberg. "As ovações que começamos a ouvir nas exibições foram o começo do fim", afirma o diretor. "Quando deixa de ser arriscado, então não é mais nada efetivo."

Vinte e um anos depois do manifesto de vanguarda, há almofadas à venda com inscrições "Dogma". "Virou moda, quando a proposta era justamente a de um cinema nu."

"Dogma do Amor", que Vinterberg lançou em 2003, já mostrava um descolamento das propostas do movimento. "A Caça" (2012), pelo qual foi indicado ao Oscar, o tirou do nicho. E nada mais distante da crueza do manifesto de 1995 do que seu épico romântico "Longe Deste Insensato Mundo", lançado em 2015.

Vinterberg também rejeita fazer cinema político. "Se eu fosse ficar veiculando nos filmes as minhas ideias políticas, aí minhas obras não estariam mais abertas", diz ele, um "humanista de esquerda".

O ex-parceiro Von Trier, figura controversa do cinema autoral (disse "simpatizar com Hitler" e acabou expulso de Cannes), esteve na sala de edição de "A Comunidade".

"Ainda somos camaradas", conta Vinterberg. "Mas eu jamais me mudaria para uma comunidade com ele. Por quê? Ah, isso eu vou deixar no ar."


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