Folha de S. Paulo


Mostra relaciona móbiles de Calder a obras-primas do neoconcretismo

"Branco e preto são as cores fortes", escreveu Alexander Calder. "Vermelho serve para marcar a ponta de um triângulo, que não pode ser equilátero, isósceles nem retângulo. Qualquer coisa que sugira simetria é indesejável."

Esse manual um tanto rígido, de extrema precisão construtiva, está por trás das formas dóceis que o escultor americano faz dançar no espaço, penduradas nas hastes de metal de seus famosos móbiles –antes de se tornar um dos artistas mais influentes do século 20, Calder, morto aos 78, há 40 anos, estudou engenharia mecânica.

Forjada nas cinzas da Segunda Guerra, no momento em que Paris sucumbia e Nova York se tornava o epicentro estético do planeta, sua obra apareceu como antídoto à desilusão e ao desespero. Ela reinventou a relação do corpo do espectador com formas não mais estáticas nem indiferentes a ele, dando vida às rebarbas metálicas, arames e chapas de aço que se desprendiam como escamas das máquinas em construção.

No fundo, o artista agora alvo de uma grande retrospectiva no Itaú Cultural subverteu a pujança industrial da América e a obsessão da arte moderna por motores e engrenagens para criar formas soltas, livres e alegres, que fossem ao mesmo tempo capazes de desafiar a gravidade, no caso, o luto do pós-Guerra.

Essa dimensão libertária de Calder e sua vontade de vencer a paralisia dos quadros na parede também seria um dos embriões plásticos do neoconcretismo brasileiro, vanguarda que se firmou nos anos 1960 à luz dos desmandos do regime militar no país.

Tanto que as cerca de 30 obras do americano na mostra, a maioria móbiles, travam um diálogo profundo com trabalhos de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, a trinca de heróis neoconcretistas, no centro cultural da Paulista.

"Ele tem essa dimensão lúdica, uma certa vivacidade, uma alegria que também existe nos artistas brasileiros", diz Luiz Camillo Osorio, que organiza a mostra. "A maneira como o Oiticica integra o experimentalismo à energia popular, no caso o Carnaval, é parecida com a forma como o Calder extrai do circo uma possibilidade de ativação das esculturas."

Osorio, no caso, fala das primeiras obras de Calder, bonequinhos de arame representando acrobatas e mágicos num picadeiro. Em Paris, onde viveu nos anos 1920, o artista criou circos em miniatura, orquestrando espetáculos ao vivo em que ele mesmo movia suas criaturas metálicas.

Quatro décadas depois, Oiticica levaria passistas da Mangueira ao Museu de Arte Moderna do Rio vestindo seus "Parangolés", capas coloridas que transformavam o corpo dos dançarinos em esculturas móveis. "O circo está para o Calder como o Carnaval está para o Oiticica", diz Osorio.

Mas na raiz do projeto plástico dos dois está um desdobramento no espaço das telas do holandês Piet Mondrian, pilar do construtivismo europeu, famoso por suas telas brancas com quadrados vermelhos, azuis e amarelos.

Numa visita ao ateliê de Mondrian, em 1930, Calder ficou impressionado com a forma como seus estudos presos a uma parede branca pareciam cintilar quando iluminados pela luz da janela. "O Calder então sugeriu que ele fizesse esses retângulos coloridos oscilar no espaço", conta Alexander Rower, neto do artista. "Essa foi uma experiência emocionante para ele."

SOCIEDADE IDEAL

Outro encontro emocionante foi o do crítico brasileiro Mário Pedrosa com Calder em Nova York. Uma das vozes mais influentes da intelectualidade do país, Pedrosa relutava contra a arte abstrata até ver a primeira grande mostra de Calder no MoMA, em 1943.

Nos anos seguintes, o crítico escreveu uma série de artigos sobre o artista. Na visão dele, Calder estava "próximo do ideal da arte do futuro, dessa sociedade ideal em que a arte seria confundida com as atividades da rotina diária".

De forma indireta, Pedrosa definia ali também as bases de sua exaltação da abstração geométrica no Brasil, dando lastro conceitual ao surgimento do concretismo e mais tarde o neoconcretismo –o brasileiro, aliás, ajudou a organizar mostras de Calder em 1948, no Rio, e em 1953, na Bienal de São Paulo, quando o discurso por trás dessas vanguardas ganhava corpo.

"Esse tempo que meu avô passou no Brasil teve um impacto duradouro nele, tanto do ponto de vista emocional quanto intelectual", lembra Rower. "Ele era fascinado pela energia da cultura do país, e seus móbiles cativaram a intelectualidade e os artistas brasileiros de um jeito que ressoa até hoje. Ele virou uma influência perene."

CALDER E A ARTE BRASILEIRA
QUANDO abre em 31/8, às 20h; de ter. a sex., das 9h às 20h; sáb. e dom., das 11h às 20h; até 23/10
ONDE Itaú Cultural, av. Paulista, 149, tel. (11) 2168-1776
QUANTO grátis


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