Folha de S. Paulo


Casa de Vidro de Lina Bo Bardi será restaurada com escaneamento a laser

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Visão raio-x da Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi, que será restaurada em projeto de universidade italiana e fundação Getty ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Visão raio-x da Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi, que será restaurada

Quando construiu sua Casa de Vidro no meio de uma antiga fazenda de chá no Morumbi, em São Paulo, Lina Bo Bardi levou ao limite máximo sua obsessão pela transparência na arquitetura. Esse pavilhão frágil, de finas lajes de concreto e paredes que são só lâminas de vidro, parece flutuar sobre a mata como um cristal suspenso, atravessado pela luz solar.

Ela mesma falava de uma busca por clareza e pela "vista da distância inexplorada". Seria uma casa não "amedrontada", fechada aos elementos, mas algo que desse a chance de sentir tudo o que é "poético e ético numa tempestade".

Sérgio Tomisaki/Folhapress
ORG XMIT: 061701_0.tif A arquiteta Lina Bo Bardi. (São Paulo, SP, 10.04.1987. Foto de Sérgio Tomisaki/Folhapress)
A arquiteta Lina Bo Bardi

Mas, nos últimos meses, a casa da arquiteta, que morreu aos 78, em 1992, vem ressurgindo mais transparente do que nunca. Usando um escaneador capaz de mapear cada milímetro de uma construção com raios laser, restauradores acabam de concluir a primeira etapa de um estudo para diagnosticar os problemas estruturais que ameaçam a obra erguida nos anos 1950.

Nos retratos tridimensionais criados pela máquina, a Casa de Vidro ressurge como um fantasma psicodélico, cheio de cores indicando uma condição ou estado de conservação distinto. É possível, no caso, observar variações de temperatura, pontos de umidade e graus de rugosidade de lajes e pilares do prédio nessa avalanche de tons. E o mesmo acontece com a mata ao redor.

Essa espécie de radiografia do terreno, feita com escaneadores ultravelozes e de precisão cirúrgica, já era usada fora da arquitetura. É algo empregado há tempos na agricultura, ramo em que serve para monitorar o crescimento das plantas e calcular a época da colheita ou mesmo evitar o avanço de pragas. Na mineração, ajuda a mapear o interior de cavernas e orientar as escavações.

Só nos últimos anos é que um laboratório de restauro da Universidade de Ferrara, na Itália, passou a usar esses escaneadores, que parecem simples instrumentos de medição dos ângulos de um terreno, em projetos de recuperação de obras em perigo.

Nos primeiros testes, aplicaram a tecnologia a estudos de construções renascentistas, mas logo viram que as máquinas podiam revelar muito mais sobre a estrutura de prédios não tão velhos, em especial obras de concreto que marcaram o modernismo,ou seja, grande parte da arquitetura brasileira do século 20.

"É muito mais difícil conservar algo de cem anos do que uma coisa de mais de três séculos", diz Marcello Balzani, diretor do centro de restauro italiano. "Esses grandes arquitetos fizeram todas essas obras em caráter experimental, não estavam usando técnicas já consolidadas ao longo de milênios."

Nesse sentido, mais do que uma radiografia das construções, o escaneamento com laser abre uma espécie de caixa-preta dos processos de construção de grandes nomes do modernismo que muitas vezes não revelaram seus segredos ou talvez nem suspeitassem que suas obras mais ousadas fossem mesmo ficar de pé.

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Visão raio-x da Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi, que será restaurada em parceria de universidade italiana com a fundação Getty ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Visão raio-x da Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi, que será restaurada

Balzani lembra, por exemplo, descobertas que fizeram sobre a espessura das curvas de concreto na análise da Casa das Canoas, obra de Oscar Niemeyer, no Rio, onde ele também esteve à frente de um processo de diagnóstico.

"Isso nos deixa ver a transparência da arquitetura, que é feita em grande parte de ar, são espaços vazios um ao lado do outro", ele diz. "Os estudos mostram como esses arquitetos tinham um controle da geometria, como pensavam o espaço. Vemos a relação entre as superfícies da construção, o que não aparece numa fotografia. É como estudar o corpo humano com uma ressonância magnética."

Além das casas de Niemeyer e Bo Bardi, seu time também analisa agora o esqueleto de concreto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, obra-prima de Vilanova Artigas, que passou há pouco por um restauro controverso, alvo de críticas de arquitetos.

Mas enquanto os novos exames do prédio na Cidade Universitária devem se centrar nos danos à estrutura, o trabalho na Casa de Vidro é ainda mais complexo por envolver também o extenso jardim que circunda a construção.

Depois de passar por um restauro há dez anos, a antiga residência da arquiteta vem sofrendo novos danos. Vidros trincam, por exemplo, quando as lajes se dilatam ou contraem no calor e no frio, mas a mata em volta da casa também se tornou uma ameaça, já que não houve um controle paisagístico —raízes destroem muros de arrimo do terreno e troncos e galhos tombam sobre o pavilhão principal.

"Há patologias mais profundas que estão voltando", diz Renato Anelli, do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, responsável pela casa. "Vamos trabalhar com paisagistas e fazer uma arqueologia do jardim para saber quais foram suas configurações anteriores e definir um estudo ideal para ver como ele deve ser mantido. Vamos elaborar um plano de manejo para a vegetação, que hoje é muito agressiva."

Nesse ponto, os levantamentos tridimensionais que vêm sendo feitos pelo time liderado por Marcello Balzani, que também já fez uma análise de conjuntos arquitetônicos como o Pelourinho, em Salvador, e a Vila Itororó, no centro paulistano, vai permitir não só criar um plano de restauro mas também um acompanhamento desses quadros patológicos da casa.

"Não é que depois do restauro tudo para", diz Balzani. "Se você passou por uma cirurgia, vai continuar tomando remédio, vai ficar de olho."

Visitas à Casa de Vidro podem ser agendadas em institutobardi.com.br.


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