Folha de S. Paulo


'South Pacific' abriu as portas, diz brasileiro vencedor do Tony

Marcus Leoni/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL. 15.08.16, 15H: Entrevista com o barItono Paulo Szot que estreia musical no Brasil. (Foto: Marcus Leoni/Folhapress, FOTO) ****EXCLUSIVO FOLHA****
Paulo Szot, barítono que estreia "My Fair Lady"

O barítono Paulo Szot não fez teste para "My Fair Lady", musical que estreia no próximo sábado (27) em São Paulo, mas antes passou por muitos. Só para "South Pacific", foram quatro.

Mas seu teste maior foi com "South Pacific" já premiado, em 2009, quando o diretor do Metropolitan de Nova York atravessou a praça do Lincoln Center para vê-lo no teatro Vivian Beaumont. E o convidou para protagonizar uma ópera.

"Uma vez que o Metropolitan abre as portas, outros grandes abrem. O marco da minha carreira foi 'South Pacific'", diz ele, em entrevista.

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Folha - "South Pacific" tinha "Some Enchanted Evening", um "showstopper" [cena muito aplaudida, que interrompe a apresentação]. "My Fair Lady" também tem?
Paulo Szot - A canção mais popular é "I Could Have Danced All Night", da Eliza. Toda cantora de ópera inclui no seu repertório de concerto, como bis. E a canção do Freddy, "On the Street That You Live", também é linda. As do Henry Higgins têm um caráter declamatório. São mais para dizer do que para cantar cada nota. É claro que eu busco cantar mais, descobrir essas melodias. É engraçado, porque na hora em que você passa a música com o maestro ou mesmo com a orquestra, a gente canta. Mas na hora da cena as palavras são mais fortes do que as notas musicais. Talvez seja pelo próprio personagem, o fato de ser um professor de fonética, que articula. O Rex Harrison, grande intérprete do papel, mais dizia do que cantava.

Ele não cantava muito...
É, ele cantava pouco. Mas isso é interessante, porque as canções revelam um outro lado. É palavra atrás de palavra, parece silabato [canto com velocidade e clareza nas sílabas]. A única com caráter mais perto de canção de musical, da era de ouro da Broadway, é "I've Grown Accustomed to Her Face", que virou um standard americano de jazz.

Alguma outra já se revelou?
A segunda, "I'm an Ordinary Man", é uma que a gente descobriu. Ela poderia ser entendida simplesmente como oposição homem-mulher, mas a gente conseguiu descobrir um homem que vivenciou experiências que não foram boas com mulheres. Ele narra como aparece uma mulher em sua vida e tudo o que era calmo deixa de ser. A gente entende mais o Higgins depois dela.

A famosa misoginia dele.
Exatamente. Ao mesmo tempo em que você vê um homem brilhante, com uma inteligência estupenda para uma área, para outra ele tem uma inteligência que não é tão estupenda assim.

Quando "South Pacific" estourou, eu me lembro de você declarar que já gostava de musical antes de começar na ópera.
Sempre fui apaixonado por musicais. A minha adolescência foi na época dos videoteipes e uma vez aconteceu de ter "A Chorus Line", do Marvin Hamlisch. Eu assistia dia e noite, sabia todas as falas, todas as coreografias. Teve um momento na minha vida em que a dança foi mais importante do que a música. Tive uma educação musical desde cedo, mas nesse momento da minha vida, quando tinha meus 17, 18 anos, a dança se tornou mais importante. Eu queria experimentar e acabei ganhando uma bolsa para estudar na Polônia. Segui o meu sonho. Na época só tinha condição de comprar passagem num navio cargueiro, que levou 23 dias para chegar. [risos] Mas foi maravilhoso. Quando você tem 18 anos, tudo é. Cheguei e comecei a me exercitar bastante, até demais. Sofri uma queda, o meu joelho inchou, deste tamanho. Era no período de transição do comunismo, os hospitais ainda eram um pouco difíceis, os médicos não tinham aparelhos.

Como foi este início em Cracóvia, até a queda?
Quando cheguei, olha, era um adolescente capitalista acostumado a mimos e encontrei algumas dificuldades, de dia a dia. As lojas não tinham muita coisa para vender. A gente tinha até uma carta de racionamento de chocolate, com gramas que podia ir à loja comprar. Essas dificuldades foram bem marcantes. Mas aí tinha o outro lado, que era a cultura, vasta. Me encontrava com jovens que pensavam como eu pensava. Uma comunidade de artistas jovens, com que não tive contato aqui no Brasil, infelizmente. Então me esquecia de todo o resto, me enfiava na academia de manhã e ficava me alimentando de tudo aquilo. Foi difícil acostumar, mas não tão difícil assim, porque tinha esse outro lado tão fascinante, que era aquilo que eu buscava. A dança acabou não dando certo. Os médicos disseram que era uma lesão forte, que deveria parar. Algumas semanas depois, a universidade em Cracóvia anunciou que o coral abriria vagas. Até então, nunca tinha cantado assim, solo. Fiz a audição com o maestro e ele falou que eu tinha um bom material vocal. Depois disso, da queda, o canto veio preencher aquele espaço da dança, que era o meu sonho.

Cracóvia é uma cidade mais boêmia, cultural.
É uma cidade linda e que respira cultura. Adoro Cracóvia. Foi mágico. Comecei a estudar ópera lá. Dois anos depois, consegui meu primeiro emprego como cantor numa companhia estatal chamada Slask.

Em polonês?
Polonês. Quando fiz a audição, não disse que era brasileiro. Meus pais são poloneses, eu devia ter algum sotaque, mas eles não perceberam. Quando passei, fui levar meu passaporte. "Como assim?", perguntaram. "A gente representa a cultura polonesa, como é que pode ter um estrangeiro?" Fui ao consulado, falei, eles me deram o passaporte polonês. Aí me aceitaram. Era um lugar fascinante, no campo, a companhia ensaiava no meio de um castelo. Foram cinco anos ali, com ótimos professores de canto também. Ao mesmo tempo em que trabalhava na companhia, com cantos poloneses, eu estudava ópera. Em 1995, voltei para visitar a minha família aqui e fiquei sabendo do Concurso Pavarotti. O concurso era na Filadélfia, mas ele ia estar no Rio por conta de concertos e estaria ouvindo alguns cantores. Fui para o Rio, ele me selecionou como finalista já. Viajei para a Filadélfia e foi aí que começou, o momento em que vivi rodeado de cantores de ópera mesmo e comecei a cantar. Mas a minha estreia como solista foi aqui em São Paulo.

Qual ópera?
"O Barbeiro de Sevilha", em 1997, com o Luiz Fernando Malheiro. Meu irmão trabalhava no Municipal, cantor também, e disse que o teatro está abrindo vagas para o coro. Fiz a audição, passei e depois de alguns meses o Malheiro falou, "Você é novo aqui?". Falei, "É, acabei de chegar da Polônia." "Polônia? Eu também estudei na Polônia." A gente começou a conversar de Polônia e depois de algumas semanas ele me liga, "Olha, tem um papel para você". "Que bacana! Qual é?" "Figaro, do 'Barbeiro de Sevilha'." "O Figaro???" Aí eu saí do coro e comecei a minha carreira solo.

Por que seus pais deixaram a Polônia?
Eles saíram durante a Segunda Guerra. Foram levados pelos nazistas, com as famílias deles, para a Alemanha, para campos de trabalho. Depois que a guerra acabou, a cidade deles não era mais Polônia, era Ucrânia, e seus pais tinham propostas de trabalho no Brasil. Aí vieram. Na verdade, eles se conheceram aqui, mas as histórias eram parecidas. Minha mãe e meu pai foram mandados para a Alemanha, pegaram navios e se conheceram em São Paulo, na igreja polonesa no Bom Retiro. Nossa Senhora Auxiliadora, é linda a igreja.

"South Pacific" foi seu primeiro musical. Você precisou fazer teste, como das outras vezes?
Eu estava cantando em Nice [França] e um amigo falou que tinha um teste em Nova York para um musical. Queriam um cantor de ópera. Fui e, depois da audição, senti que a sala ficou meio assim. "Ih, meu Deus do céu, não gostaram. Vou-me embora." Quando estava saindo, perguntaram: "Pode ficar até amanhã?". Não podia, estava ensaiando uma ópera em Boston, mas depois voltei, me ouviram e disseram: "Olha, queremos você, só que precisamos de mais três audições, uma para a fundação Rodgers & Hammerstein, outra para o Lincoln Center e outra para os patronos".

Broadway...
É, tem que ser aprovado por todos. Foi só depois de todas essas etapas que me confirmaram no papel de Emile de Becque e depois, a partir dessa escalação, foram escalar os outros, aí veio Kelli O'Hara e tudo mais. Eu queria muito fazer, mas fui passando por essas audições sem peso, porque já estava tranquilo naquele momento da minha carreira na ópera. Mas quando você ganha o papel e está lá, na Broadway... Eu queria fazer um bom trabalho acima de tudo, me preocupava muito, trabalhava muito. Logo depois da estreia, teve esse impacto da crítica, muito bacana, positivo. E veio toda aquela coisa, o período das premiações, em que os jurados vão aos shows durante um mês inteiro. Você nunca sabe quando é que eles estão na plateia, tem que dar tudo o tempo todo. Está sendo julgado. Tem o show que depende disso, depende de boas críticas, depende de indicações e de prêmios. É o que vai determinar se vai ficar mais tempo em cartaz. Era difícil levar tudo isso. É claro que o show era muito mais que um personagem, mas ser o protagonista de um musical tão importante para os americanos, que não tinha sido feito nas últimas décadas, pesou.

Emile de Becque é o estrangeiro.
É o estrangeiro, é o estranho. É interessante, porque Rodgers e Hammerstein decidiram colocar um cantor de ópera, que fala diferente, que canta diferente do resto, para simbolizar a pessoa que é diferente, de fora dos Estados Unidos. O bacana é que, quando comecei a estudar o musical e o diretor começou a perguntar "por que fazer novamente", a gente acentuou a questão do racismo. Esse musical foi escrito exatamente por isso. A Nellie [papel de O'Hara] é uma sulista que cresceu com uma cabeça fechada e só se depara com seu racismo quando vê que o homem que ela ama teve crianças com uma mulher negra. Para a gente é esquisito, porque o Brasil é uma mistura de tudo, mas o americano...

Uma coisa que impressionou as pessoas foi você ser cantor de ópera, mas também ator, com amplitude emocional.
Sempre me interessou muito a questão da atuação, nos papéis de ópera mesmo. Sempre quis saber das intenções. Questionava os diretores, que muitas vezes não gostavam das minhas perguntas. Mas eu acho fundamental você se questionar o tempo todo, para preencher o personagem com uma história, algo humano, não simplesmente fazer marcas. É muito comum, no mundo da ópera, você fazer marcas. Porque geralmente não tem muito tempo, os ensaios de ópera são curtos, as pessoas já chegam com o papel pronto.

As próprias temporadas são curtas.
É. E o canal de comunicação é diferente, é a voz. Na ópera é a voz. Não adianta você ser um ator fabuloso, se não tiver a voz operística. Não vai funcionar. É um outro canal, que funciona muito bem, só que diferente. Mas eu sempre busquei unir. É claro que a gente não tem esse trabalho tão minucioso, como a gente tem agora com Jorge [Takla] e como eu tive lá em Nova York, de trabalhar cada frase, cada intenção. Analisar todos os lados, ver por que sim, por que não. É importantíssimo e é fascinante. É isso que mantém o trabalho do ator na Broadway, oito shows por semana, possível. Você tem esse questionamento diário, essas emoções que mudam com as suas próprias emoções. Acaba levando seu dia-a-dia para o palco. Essa flexibilidade, o jogo com o outro ator, que também vai estar diferente a cada dia. É engraçado quando os cantores de ópera vão assistir e falam, "Como é que você consegue fazer oito shows por semana?". Porque na ópera a gente não tem esse jogo de emoções. A ópera é técnica. Você tem que respirar, olhar o maestro, cantar e fazer a sua frase musical perfeita. Essa é a preocupação. No teatro, não. É uma coisa do momento, o que for verdadeiro é o que vai funcionar.

Com a projeção do Tony, sua própria carreira na ópera cresceu. Uma alavancou a outra?
Não sei dizer, mas que o Tony me abriu portas, abriu. Primeiramente, no Metropolitan. O diretor foi assistir "South Pacific" e já veio com uma proposta para protagonizar "O Nariz", de Shostakovich. Foi inusitado, porque é muito difícil chegar no Metropolitan já como protagonista. Geralmente testam antes em outros papéis. Foi por causa do Tony. E uma vez que o Metropolitan abre as portas, outros grandes teatros também abrem. Com certeza, o grande marco da minha carreira foi "South Pacific".

Você é de Ribeirão Pires?
Nasci em São Paulo, mas a minha família se mudou para Ribeirão Pires [no ABC paulista]. Cresci lá. Era muito menor do que é hoje, uma cidade realmente pequena, com três ruas, pouco mais. E mesmo assim eles tinham lá uma escola de artes, em que a minha mãe me colocou quando eu era criança. Porque eu tentei jogar futebol, mas era sempre o último do banco e, quando chamavam, diziam, "Olha, você vai entrar, mas não toca na bola". Foi muito frustrante. Minha mãe, vendo aquilo, falou, "Ah, então vou colocar na escola de música, vamos ver se dá certo". E deu, logo de início os professores já diziam para a minha mãe que era interessante investir, incentivar. E eu adorava, ficava o dia inteiro na escola de música.


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