Folha de S. Paulo


Masp reúne os negros e índios do país desigual de Candido Portinari

Lado a lado, abrindo uma grande mostra dedicada a Candido Portinari agora no Masp, estão três telas retratando o mesmo modelo. De longe, ele é "O Lavrador de Café", visto de corpo inteiro, enxada na mão. Num plano mais fechado, de braços cruzados, ele é "O Mestiço", enquanto um close derradeiro destaca só a sua "Cabeça de Mulato".

Numa sequência quase cinematográfica, o artista desdobra sua visão sobre um personagem que também se tornou múltiplo em sua obra –o trabalhador ou tipo popular, quase sempre marginalizado.

Embora sejam todas do mesmo ano e retratem o mesmo homem –Portinari fez os três quadros em 1934–, o olhar do modernista, que morreu aos 58, em 1962, nunca se desprendeu dessas figuras, fazendo desse modelo em particular um arquétipo de todos os seus homens e mulheres da roça e do morro.

Divulgação
Obra de Candido Portinari que está em mostra no Masp
"O Lavrador de Café", obra de 1934 de Candido Portinari em exposição no Masp

É fato que o artista também pintou montanhas de retratos de endinheirados brancos, mas seu olhar sobre negros e índios, que oscilam entre a tragicidade e a celebração, entrou para a história quase como sinônimo de brasilidade, de um povo sofrido que se esforça para nunca perder a leveza.

Nesse sentido, a seleção de obras de Adriano Pedrosa, diretor-artístico do Masp, e dos curadores Rodrigo Moura e Camila Bechelany, não esconde o desejo de enquadrar Portinari como o artista moderno mais sensível à questão racial no Brasil, ou mesmo, o mais "engajado", como lembra Pedrosa, na construção de uma obra plástica que revela sem rodeios e cheia de exuberância as fricções que alicerçam a desigual sociedade brasileira.

Não por acaso, o cartaz da mostra já traz aquele lavrador-mestiço-mulato olhando para uma tela inacabada, a última de Portinari, que retrata uma boneca dos índios carajás.

Essa figura de uma índia estilizada, tal qual os objetos esculpidos pela tribo, seria não só o outro extremo do espectro de raças excluídas a povoar suas composições mas também um exemplo de como Portinari foi um artista múltiplo, que flertou com o cubismo, o concretismo, o muralismo e tantas outras vanguardas sem se filiar a nenhuma delas.

"É um Portinari antropofágico, que canibaliza todas essas referências", observa Pedrosa. "Nos parece apropriado olhar para ele numa perspectiva mais global. São personagens todos negros, mestiços, mas ele faz isso de várias maneiras, mais geometrizada, uma coisa mais romântica, mais trágica, mais dramática."

PLURALIDADE

No subsolo do museu, onde as telas estão penduradas e enfileiradas em finas hastes de madeira, todos esses lados de Portinari saltam aos olhos ao mesmo tempo, enfatizando a pluralidade dessas suas pesquisas estéticas.

Vistas em ondas marcadas por temas específicos –na primeira leva, o lavrador e suas variações, depois crianças brincando, festas populares na favela e, por último, seus famosos retirantes–, as obras também revelam como Portinari arquitetou um universo visual em que prevalece seu foco no que Pedrosa chama de "narrativas populares, indigenistas, locais e rurais".

Mas nem sempre reais. Em muitas telas, Portinari construiu um mash-up visual da roça de terra vermelha de sua Brodósqui natal, no interior paulista, e os morros do Rio, onde se radicou. Esse tom avermelhado, aliás, domina grande parte de suas obras dos anos 1930, em que o morro quase radioativo em tons quentes no primeiro plano afoga um tímido mar azulado que se insinua ao fundo.

PARAÍSO INCERTO

Na década seguinte, esse azul ganha corpo e passa a dominar fundos que beiram a abstração, numa gradação glacial que emoldura o desespero de seus personagens. Debaixo desse céu, eles parecem flutuar sobre extensões áridas, de ocres e vermelhos, pontuadas por caixões de criança ou ossadas de boi.

O traço fugidio, linhas negras que se desprendem do volume das figuras, sugere uma espécie de ascensão, como se Portinari flagrasse seus miseráveis entre a vida e a morte, já rumo a um paraíso incerto.

Todo esse sofrimento parece atingir seu ápice no aspecto geometrizado de seus retirantes cadavéricos rodeados de urubus. Últimas telas da mostra, elas chamam a atenção lá do fundo da sala, como um farol às avessas, ou destino incontornável. Essas são, aliás, as obras mais fotografadas do museu e mais compartilhadas nas redes sociais.

CANDIDO PORTINARI
QUANDO de ter. a dom., das 10h às 18h; qui., até 20h; até 15/11
ONDE Masp, av. Paulista, 1.578, tel. (11) 3149-5959
QUANTO R$ 25, grátis às terças


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