Folha de S. Paulo


Crítica

Max Blecher tinge de absurdo relações miúdas de tuberculoso

"Corações Cicatrizados", de 1937, é o segundo dos três romances escritos pelo poeta e romancista romeno Max Blecher (1909-38). Em parte, trata-se de um relato autobiográfico, uma vez que o seu protagonista, tal como Blecher, é um jovem romeno atacado do mal de Pott, vale dizer, um tipo de tuberculose extrapulmonar que atinge a coluna vertebral e gera contínuos abscessos nessa região do corpo.

O romance trata do período de um ano em que o jovem Emanuel passa em Berck, uma estância francesa no Canal da Mancha que se notabilizou no tratamento da doença, e onde os pacientes circulam em "goteiras", isto é, carrinhos com quatro grandes rodas de borracha, que usam seja para se locomover, seja para dormir, e até mesmo para passear fora dos sanatórios, acoplados a charretes.

É quase sempre dentro de uma goteira, onde Emanuel se encontra deitado e engessado do pescoço ao quadril, que o romance o acompanha: desde as primeiras sensações de demolição dos contornos do real, quando do diagnóstico da doença, até as perplexidades de testemunhar os delírios e óbitos dos companheiros de enfermidade, ou de acomodar o corpo ao sexo, quando encontra uma moça disposta a entregar-se com devoção a ele.

O tema da tuberculose torna possivelmente inevitável a lembrança de "A Montanha Mágica" (1924), de Thomas Mann, mas nada tem da magnificência alegórica e pretensão enciclopédica desta, que quer abarcar as perturbações do mundo ao longo da história. Ao contrário, em "Corações Cicatrizados", o conflito permanece no âmbito das relações miúdas travadas no sanatório e das repugnâncias do corpo encerrado naquela espécie de esquife móvel.

MELANCOLIA

O livro desdobra-se nesse tom menor, em que o tédio ritualizado em "hábitos e disciplinas estúpidas" acaba por consumir o tempo em melancolia e desolação.

Mas existe no romance, em contrapartida, a construção de algumas imagens contundentes que resumem o seu núcleo deceptivo: o sexo encolhido e inerte de um antigo atleta sexual; uma bota velha e um pássaro morto, nas mãos de uma amante desdenhada; uma água-viva grudenta e putrefata na praia; uma perna amputada nas mãos de uma enfermeira que, embrulhada em gaze e algodão ensanguentado, lembra um "magnífico buquê de rosas".

Tais irrupções bruscas de imagens bizarras ou patéticas numa rotina de acontecimentos maciçamente banais dão ao romance alguma vertigem de absurdo, sem que cheguem exatamente a prevalecer seja o humor nonsense, seja o surrealismo. O relato permanece de escopo naturalista, com algum viés decadentista, onde se aprofundam as sensações de inércia e repugnância, e onde a consciência não pode avançar na análise de uma existência marcada pelo infortúnio e a ineludível autopiedade.

Antes de encerrar, anoto duas outras sensações de leitura: a satisfação de encontrar o romance em tradução direta do romeno, assinada por Fernando Klabin; a impaciência diante do projeto gráfico do livro. Ter de lê-lo na horizontal, salvo engano, nem acrescenta algo ao dado de que o protagonista está deitado nem ajuda a folhear o livro sem ter de prestar atenção ao design.

CORAÇÕES CICATRIZADOS
AUTOR Max Blecher
TRADUÇÃO Fernando Klabin
EDITORA Carambaia
QUANTO: R$ 79,90 (232 págs.)


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