Folha de S. Paulo


Decisão judicial sobre obra de Kafka deve trazer à luz inéditos do escritor

Como na história de Joseph K, o cidadão que se vê envolvido numa ação jurídica interminável no romance "O Processo", de Franz Kafka, uma disputa pela obra do escritor tcheco se tornou uma saga com capítulos ainda em aberto que podem se metamorfosear em um mal-estar internacional.

Após decisão da Suprema Corte de Israel, a Biblioteca Nacional Israelense (BNI) exige que o Arquivo de Literatura Alemã, em Marbach (Alemanha), lhe transfira documentos originais de Kafka, entre eles o manuscrito original, em alemão, de "O Processo", um dos clássicos da literatura mundial.

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ORG XMIT: 110901_0.tif O escritor tcheco Franz Kafka.
O escritor tcheco Franz Kafka

Caso o arquivo alemão se recuse, a biblioteca israelense promete entrar com uma ação internacional para reaver os documentos.

O drama literário entre as duas instituições deriva de controvérsia de décadas sobre a quem pertence o espólio do escritor alemão Max Brod, amigo e confidente de Kafka, que inclui cartas, diários e manuscritos originais do escritor tcheco.

Depois de sete anos de ações na Justiça de Israel, a Suprema Corte do país decidiu, no domingo passado (7), que a vasta coleção de Brod pertence à BNI, em Jerusalém, já que, em testamento de 1961, Brod deu instruções para que seu espólio fosse transferido à biblioteca da Universidade Hebraica de Jerusalém, hoje a BNI.

O problema é que as "herdeiras" anteriores –que perderam a guarda do espólio– venderam parte do tesouro literário a instituições ou a colecionadores nas últimas décadas. Num dos leilões públicos, em 1998, o Arquivo de Marbach comprou, por US$ 2 milhões, o manuscrito original de "O Processo", publicado por Brod pela primeira vez em 1925, um ano depois da morte prematura de Kafka, aos 40 anos, de tuberculose.

"Espero que Marbach e todos os compradores dos itens do espólio de Brod nos procurem para resolver essa questão através de algum tipo de acordo. Pelo veredito, todo o material pertence a nós", disse à Folha Aviad Stollman, curador da Biblioteca Nacional de Israel. "A equipe de Marbach participou da disputa jurídica desde o começo, portanto precisa honrar o veredito. Se isso não acontecer, vamos pensar em medidas legais."

Em comunicado enviado à Folha, o Arquivo de Literatura Alemã em Marbach afirmou que ainda não estudou a fundo o veredito publicado em hebraico e, portanto, "segue o principio de não comentar textos aos quais não tem acesso, como no caso da recente decisão".

"Se as notícias sobre o caso forem concretas, parabenizamos nossos colegas da Bibiioteca Nacional de Israel, com quem mantemos uma relação amistosa de anos. E com os quais compartilhamos as tarefas de conservação, exploração e pesquisa dos documentos de Max Brod", continou a nota, sem deixar claro se irá procurar a instituição israelense.

O curador da BNI também enfatiza a colaboração entre as instituições, mas acusa membros do Arquivo de Marbach de tentar minar a transferência dos documentos, afirmando que, em Israel, o espólio não seria bem conservado.

"Eles vieram até a Suprema Corte israelense e apresentaram suas alegações de maneira, como direi, mordaz e ofensiva. Disseram coisas pouco simpáticas sobre a biblioteca e o Estado de Israel", afirmou Stollman.

O caso do espólio de Max Brod é polêmico há quase meio século. O assunto se tornou público, no entanto, no final da década de 90, quando reportagens revelaram que os papéis estavam acumulando poeira e se deteriorando no apartamento de Esther Hoffe, ex-secretária de Max Brod, que se considerava herdeira legal do material.

Segundo testemunhas, os documentos ficavam espalhados, empilhados numa mesa ou servindo de cama para gatos. Após a morte de Esther, aos 101 anos, em 2007, as filha Eva e Ruth, reclusas como a mãe, lutaram para manter o tesouro em família, mas perderam em todas as instâncias.

"Eu era muito próxima de Max Brod e o conheci aos sete anos de idade. Ele é, na verdade, meu segundo pai. É importante para mim que ele seja compreendido como escritor", contou Eva Hoffe, 83, à TV alemã ARD, na primeira e única vez que falou à imprensa, enfatizando o fato de que o espólio inclui, primordialmente, milhares de documentos de Brod, um conhecido autor, compositor e jornalista, mas menos famoso do que Kafka.

Estudiosos de Kafka e de Brod temem que Eva, num ato desesperado, venda ou destrua os documentos que ainda possuiu (cerca de 80% foram colocados em cofres em Israel e na Suíça, em 2010).

"Seria criminoso se ela fizesse isso. Teria que enfrentar as consequências", diz pesquisador americano Mark H. Gelber, um dos maiores especialistas em Kafka.

Gelber se alegrou com a decisão do Supremo. Ele é um dos que defendem que o tesouro literário deveria ficar em Israel porque tanto Kafka quanto Brod eram judeus. Mas nem todos concordam. Uns acreditam que o material pertence aos tchecos porque Kafka nasceu em Praga. Outros, que o tesouro deve ir para a Alemanha, por que a obra foi toda escrita em alemão.

No centro dessa discussão está a identidade judaica de Kafka. Para o escritor israelense Dan Meiron, que acaba de lançar o livro "O animal na sinagoga "" aspectos do judaísmo de Franz Kafka" (sem edição no Brasil), o autor de "Metamorfose" tinha um relacionamento até mesmo de ódio com a religião.

"Kafka era um judeu cujo judaísmo era parte de seu tormento, que perguntava a si mesmo o que é ser judeu. Suas respostas são horríveis. Kafka é repleto de autodepreciação judaica", disse Meiron ao Canal 10 da TV israelense.

Para Mark Gelber, no entanto, Kafka estudava hebraico nos últimos anos de sua vida e, se não tivesse morrido prematuramente, poderia até mesmo viver uma metamorfose de identidade.

"Quem sabe o que aconteceria? Ele poderia ter vindo morar em Tel Aviv, assim como Brod", especula o estudioso.


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