Hitchcock chegou a dizer que completou o filme de maneira satisfatória só porque o produtor [David O. Selznick] andava ocupado com '...E o Vento Levou'
"Rebecca" é um filme de Hitchcock e não é. Quase podemos sentir fisicamente a disputa entre o diretor inglês, recém-chegado aos EUA, e o produtor, David O. Selznick, famoso entre, outras coisas, pelo controle que exercia sobre seus filmes (e que havia trazido o cineasta a Hollywood).
É Hitchcock que comanda o jogo logo no início, por exemplo, quando ilumina esse momento com seu humor afiado, ao fazer da sra. Van Hopper a representação do pedantismo e da falta de tato.
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Joan Fontaine (à esq.), como a sra. De Winter, e Judith Anderson, com a sra. Danvers |
É a mão de Hitchcock que está lá a cada vez que vemos a sra. Danvers (Judith Anderson), a terrível governanta, passear seu olhar terrível e o vestido negro pela casa que um dia foi de Rebecca, onde deveria reinar a nova sra. De Winter (Joan Fontaine).
Também vemos a mão do diretor quando um grupo de homens surge em meio a sombras que lembram tanto um filme de Fritz Lang.
Não é a presença de Hitchcock que sentimos, quando o melodrama se impõe ao suspense e o filme se enfraquece, ou quando longas explicações se impõem: uma dialogação bem estranha aos hábitos do mestre inglês.
Logo, no entanto, uma reviravolta acontece, e a tensão do suspense ressurge (as reviravoltas são no geral boas, exceto no final, quando se tornam excessivas e, por isso, um tanto artificiais).
Tudo é explicável: "Rebecca" foi um célebre romance de Daphne du Maurier, e Selznick acreditava que livros de sucesso deviam ser adaptados o mais fielmente possível. Uma visão oposta à de Hitchcock, que gostava de trabalhar com livros obscuros e remoldá-los à sua maneira.
O filme, que ganhou o Oscar de melhor filme em 1941 e agora volta aos cinemas em cópia restaurada, narra a história do soturno viúvo de Winter (Laurence Olivier), que encontra em Monte Carlo uma garota simples e decide casar com ela (seu nome de solteira nunca é pronunciado). Mas na mansão onde vão morar existe a sombra da outra, aquela que todos julgam excepcional, única: a finada Rebecca.
A história oscila entre a possibilidade de superar ou não o fantasma de Rebecca, que afasta o casal. Já o filme oscilará sempre entre duas vontades fortes e talentosas, a de Hitchcock e a de Selznick. Hitchcock chegou a dizer que completou o filme de maneira satisfatória só porque o produtor andava ocupado com "...E o Vento Levou".
Pode ser. Deve ser! Mas, hoje, mais do que tudo nos importa a possibilidade de ver um Hitchcock que parece por vezes partilhar o sentimento de inadequação da jovem sra. De Winter (ele, que acabava de chegar a Hollywood para logo descobrir que lidava com um tirânico patrão) e cultivá-lo na figura de Joan Fontaine.
Fontaine em algum momento lembra a Kim Novak de "Um Corpo que Cai", vez por outra ela própria em "Suspeita", não raro Ingrid Bergman em "Sob o Signo de Capricórnio". A construção da mulher hitchcockiana é de longo fôlego.
No conjunto dessa batalha que foi "Rebecca", diga-se, é Hitchcock quem triunfa. Vemos aqui não o grande diretor que chegaria ao apogeu ao longo dos anos 1950, mas um cineasta efetuando a dura, porém fulgurante, transição para Hollywood. Lutando para se afirmar como o autor de pleno direito que era na Inglaterra e seria nos EUA.