Folha de S. Paulo


Obras da Bienal de Veneza extrapolam arena construtiva e discutem conceitos

Numa sala toda branca, quase um ambiente cirúrgico, os olhos levam alguns segundos para notar os contornos tímidos de plantas arquitetônicas e desenhos técnicos, também brancos, esculpidos em placas de gesso nas paredes.

Mas esse silêncio visual logo se dissolve no espanto. Ali, em riqueza de detalhes, estão os projetos usados pelos nazistas para a construção das câmaras de gás de Auschwitz, do detalhe do furo no teto por onde passava o Zyklon B, que matou tantas vítimas, ao mapa da rede de dutos que levavam o veneno.

Gianni Cipriano/The new York Times
Máscara de gás esculpida no gesso em instalação sobre Auschwitz na Bienal de Veneza
Máscara de gás esculpida no gesso em instalação sobre Auschwitz na Bienal de Veneza

Uma prova de que os algozes planejavam criar verdadeiras máquinas de extermínio é que construtores foram orientados a reinstalar as portas –elas deveriam abrir para fora e não para dentro, caso contrário emperrariam contra os corpos amontoados no chão.

Essa arquitetura ao reverso, que parte das evidências históricas na tentativa de buscar reparação e justiça, sintetiza a atual Bienal de Arquitetura de Veneza. Em cartaz até novembro, a primeira edição da mostra comandada por um latino-americano, o chileno Alejandro Aravena, escalou obras que extrapolam a arena construtiva para discutir até que ponto a criação de ambientes deve responder questões também de ordem ética e política.

Na entrada dos dois pavilhões reservados à seleção principal, o Arsenale e o prédio central dos Giardini, Aravena usou o entulho de edições passadas do evento para criar cenários ao mesmo tempo belos e opressores. Barras de ferro retorcido penduradas do teto brilham na penumbra, como agulhas afiadas numa caixinha de joias.

Não há dúvida que o terreno aqui é o da ambivalência. Enquanto repisa a cartilha da sustentabilidade e faz a apologia de técnicas construtivas tradicionais –como o uso do tijolo pelo paraguaio Solano Benítez, o bambu do colombiano Simón Vélez, a lama da alemã Anna Heringer–, Aravena também abre espaço para formas arrebatadoras.

Nesse último campo, estão obras como um mercado convertido em centro cultural pelo português Eduardo Souto de Moura. Autor do edifício original, o vencedor do Pritzker, maior prêmio da arquitetura, mandou destruir a cobertura de seu prédio para criar um bambuzal de pilares destroçados, marco definidor da nova obra –ou seja, a demolição vira força construtiva.

Num deserto do Sudão, o britânico David Chipperfield criou um museu de pedra e areia que parece desaparecer entre as dunas. A firma Transsolar, que trabalha com o francês Jean Nouvel na filial do Louvre em Abu Dhabi, faz buracos no teto em ângulos precisos para articular uma tempestade de raios de sol.

BELEZA FRÁGIL

Buscando esse dado imaterial, Aravena, que ficou famoso por seus projetos de habitação social, atingiu em Veneza o equilíbrio entre a arquitetura engajada, que despontou na contramão dos projetos espetaculares da virada do milênio, e o resgate da crença no poder da forma.

Mas não qualquer forma. Às vezes meio hippie, sua seleção destaca obras que somem na paisagem em comunhão com a natureza. Falando em "originalidade arcaica", o arquiteto exibe na mostra uma espécie de panorama zero da arquitetura. Essas construções mais sólidas enquanto ideias do que em seus alicerces seriam a chave para o futuro das construções.

Nesse sentido, o desenho da firma paulistana SPBR para uma nova sede do Museu de Arte Moderna de São Paulo –único projeto brasileiro na seleção principal da mostra que deu o Leão de Ouro pelo conjunto da obra a Paulo Mendes da Rocha– chamou a atenção de Aravena por quase se dissolver no horizonte. Em vez de um caixote para exposições, o MAM seria uma série de passarelas suspensas formando um quadrado translúcido em torno do parque Ibirapuera.

Essa é, no entanto, uma beleza frágil. Estruturas atravessadas pela luz também deixam passar mísseis e balas de revólver. Em paralelo às obras diáfanas da mostra, Aravena volta à questão da violência com certa obsessão.

Das câmaras de gás de Auschwitz, seu olhar sobre a arquitetura da destruição entra no presente pelo trabalho do grupo britânico Forensic Architecture, que analisa imagens de satélite de prédios bombardeados para desmentir a versão de exércitos sobre a morte de civis em ataques. É a visão da arquitetura como antídoto para um mundo afundado no perigo.


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