Folha de S. Paulo


Com peças políticas e irônicas, autor romeno virá xodó no teatro brasileiro

Pedro Podestá
O dramaturgo romeno Matei Visniec em frente à Rádio França Internacional, em Paris
O dramaturgo romeno Matei Visniec em frente à Rádio França Internacional, em Paris

Radauti, cidade de 20 mil habitantes no nordeste da Romênia, é rasgada de uma ponta à outra por uma estrada de ferro.

Não parece gratuito, portanto, que um filho ilustre, o dramaturgo e poeta Matei Visniec, 60, seja também ele um homem partido ao meio, equilibrando-se entre dois idiomas (o materno e o francês), duas carreiras (as de jornalista e de autor) e dois sistemas político-econômicos (o comunismo soviético e o capitalismo globalizado).

Onde não há sinais de divisão é na acolhida brasileira ao teatro de Visniec: desde 2012, quando a É Realizações começou a editar a dramaturgia do romeno naturalizado francês, proliferam montagens de seus textos do Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando por Bahia, São Paulo e Rio.

Em 2014, a atriz Regina Duarte pinçou três histórias da coletânea de peças curtas "Cuidado com as Velhinhas Carentes e Solitárias" para compor "A Volta para Casa", sua segunda direção. Um ano antes, o encenador baiano Marcio Meirelles estivera na dianteira da "febre", com "Espelho para Cegos", concebido a partir de "Teatro Decomposto...". Desde então, realizou outras oito produções visniequianas —e planeja outras tantas mais.

Divulgação
Regina Duarte, diretora da peça 'A Volta para Casa', de Matéi Visniec, maquia o ator Ivan Izzo crédito: divulgação ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Regina Duarte, diretora maquia o ator Ivan Izzo para sua montagem de 'A Volta para Casa'

"Decidi montar na primeira página da primeira peça [que li]. Foi fulminante", diz o diretor. "Há nele uma visão ao mesmo tempo cruel e realista da nossa experiência com o amor, a morte e o poder. [...] É incrível como as palavras são concretas; são tijolos que voam através de vidraças em câmera lenta."

Essas armas retóricas, Visniec as lapidou sob a ditadura de Nicolae Ceausescu (1965-1989). O regime fazia jogo duplo: liberava as antologias poéticas dele, mas barrava as peças.

RENASCIMENTO

"No teatro, a crítica social era mais direta, enquanto na poesia ela vinha 'embalada' em metáforas", afirma o autor à Folha. "O poder não tinha tanto medo de um cidadão que lesse uma obra contestadora sozinho em sua casa. Já o teatro era mais perigoso: a emoção coletiva suscitada por uma peça poderia descambar para a revolta."

Banido em 1987, o escritor partiu para Paris, onde pediu asilo político e, algum tempo depois, começou a trabalhar na Rádio França Internacional —onde permanece até hoje.

"Mais do que a interdição oficial, o que me amedrontava era a autocensura. Temia virar um 'mutante' que se adapta à miséria moral e à ambiguidade do mal. A perspectiva de me transformar em 'colaborador' de um poder totalitário era assustadora", conta Visniec, que, uma vez radicado às margens do Sena, passou a assinar peças no idioma de Molière. "Queria renascer em outra língua."

Pedro Podestá
Visniec em frente à Rádio França Internacional, em Paris, onde trabalha como jornalista
Visniec em frente à Rádio França Internacional, em Paris, onde trabalha como jornalista

Renascimento que, nesse caso, não rimou com esquecimento. Liberado da mordaça de Ceausescu, Visniec soltou nos palcos o bestiário do aparelho repressivo soviético.

A fauna de "Ricardo 3º Está Cancelada" (2001), por exemplo, inclui agentes da Seção de Identificação de Silêncios Suspeitos e do Serviço de Limpeza Ideológica de Superfície (referente a cenários, figurinos e adereços). Todos submetem o encenador russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940) —perseguido por Stálin– a interrogatórios surreais, enquanto ele tenta montar a peça de Shakespeare citada no título.

Já em "A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais" (1998), o diretor de um hospital psiquiátrico de Moscou convida um escritor a palestrar sobre as glórias do regime vermelho, em linguagem acessível aos pacientes. Que só estão ali por "padecer" de aguda descrença nos ditames de Stálin.

Visniec tampouco reza pela cartilha capitalista. Seu "Paparazzi ou A Crônica de Um Amanhecer Abortado" (1997), montado neste ano no Rio, flagra a indiferença com que um grupo de personagens recebe a notícia da iminência do apocalipse. O fim do mundo que se dobre ao hedonismo desarvorado.

ENCONTRANDO GODOT

Outro traço distintivo do romeno é o apreço por jogos metalinguísticos; volta e meia ele empurra para a cena colegas de ofício, encurralados ali por personagens desgostosos com a própria sorte. É assim que, em "O Último Godot" (1987), Beckett atura as lamúrias daquele que todos esperam há décadas ("Veja Shakespeare! Todos os personagens aparecem! Até o fantasma!", pranteia o eterno ausente).

Tête-à-tête não menos efusivo tem o autor de "Tio Vânia" com suas criaturas em "A Máquina Tchékhov", montada há pouco em São Paulo. O filósofo e escritor Emil Cioran (1911-95), que trafegou (como Visniec) entre identidades e línguas romena e francesa, é mais um a ressurgir enquanto personagem (em "Os Desvãos Cioran...").

Lenise Pinheiro/Folhapress
Sao Paulo, SP, Brasil. Data 05-08-2015. Espetaculo A maquina Tchekhov. Atores Dinah Feldman (esq), Fernando Rocha, Brian Penido, Emmilio Moreira (chapeu),Mariana Muniz, Fernando Poli, Ariana Sliva e Michel Waiman (frente sem camisa). Instituto Cultural Capobianco - Teatro da Memoria. Foto Lenise Pinheiro/Folhapress
Elenco da peça 'A Máquina Tchékhov', montagem dirigida por Clara Carvalho e Denise Weinberg

A produção literária do romeno também brinca com figurões das letras. Em um de seus romances, os fantasmas de Hemingway, Camus, Borges e Ionesco (este um dos artífices do teatro do absurdo, ao qual a crítica costuma filiar Visniec) desfilam em meio a personagens encarnados.

Em outro, o autor transforma o Josef K. de Kafka em Kosef J. e subverte o impasse de "O Processo": o drama do confinamento arbitrário vira o da liberdade indesejada.

E há ainda mais na arca sui generis do escritor: anões de jardim que se põem a falar, borrachas gigantes que apagam tudo o que lhes cruza o caminho, palavras que aprontam um motim numa livraria

A inspiração para esse mundo delirante vem das obras surrealistas e dadaístas que Visniec devorou na juventude. Mas também do realismo fantástico latino-americano. "García Márquez, Fuentes, Vargas Llosa, Sabato e outros alimentaram minha imaginação e um certo gosto pelo paradoxo", afirma.

FEBRE TROPICAL

Por falar em paradoxo, por que o teatro de um romeno que ataca a deriva autoritária do comunismo virou coqueluche nos trópicos? Visniec palpita: "Os dois países se encontram na mesma etapa histórica. Saíram há pouco de ditaduras, são lugares em que o futuro está para ser construído. É agora que a esperança existe, e o povo acordou para isso".

O diretor Marcio Meirelles faz coro. "Ele saiu de uma ditadura em que os lados do jogo estavam bem definidos para morar no Ocidente, onde o cerceamento existe de forma difusa e o inimigo se esconde inclusive no prazer. No Brasil, também passamos de uma ditadura para um regime neoliberal em que não se sabe onde está o inimigo."

Já para Edson Filho, dono da É Realizações (pela qual saíram 17 volumes de peças de Visniec, além do romance "O Negociante de Inícios de Romance"), a escrita do romeno encara "as nossas inquietações para além de ideologias e reflete o que os brasileiros sentem neste momento de degradação de valores". O editor tem na manga outras três peças e um segundo romance do autor.

"Não é à toa que ele esteja sendo muito bem absorvido por aqui", completa José Roberto Jardim, que dirige "Adeus, Palhaços Mortos!". "Ele fala muito de polarização, e vivemos uma polarização de ideologias."

A atriz e diretora Clara Carvalho, que assinou com Denise Weinberg uma montagem de "A Máquina Tchékhov", sugere que a chave para entender o "frenesi Visniec" está na "cultura feérica, periférica e bagunçada" do Leste Europeu de onde Visniec é originário, não distante da do Brasil.

"É o dramaturgo de uma terra de ninguém, que é como eu sinto o nosso país. Ser romeno, de muitas formas, é parecido com ser brasileiro. O caos e a falta de respeito pelo humano são semelhantes. Já pensou fazer uma peça sobre o atendimento no SUS? O Matei faria muito bem", diz ela.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Companhia Os Barulhentos em 'Aqui Estamos com Milhares de Cães Vindos do Mar
Companhia Os Barulhentos em 'Aqui Estamos com Milhares de Cães Vindos do Mar'

Rodrigo Spina, diretor de "Aqui Estamos com Milhares de Cães Vindos do Mar", que a Cia. Os Barulhentos criou a partir de "Cuidado com as Velhinhas...", acredita que os textos do autor conversam com "a cegueira absoluta, a preguiça e a falta de aptidão para ver e ouvir o outro" do Brasil atual.

"O país nunca esteve tão polarizado, o tecido social está começando a furar. Ao questionar o que restou de sua pátria, ele retrata exatamente a fase que vivemos", avalia.

Justamente para tentar reinstaurar alguma ordem no mundo é que a literatura se faz necessária, arremata Visniec: "É preciso escanear a dor do mundo. Para isso, filósofos, jornalistas e políticos não são suficientes. Poetas e escritores têm ferramentas mais sutis a fornecer. Descobrir e expor o lugar dos ferimentos pode ajudar a tratá-los".

O homem partido ao meio de Radauti encontrou o seu unguento.

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Para ver Visniec

ADEUS, PALHAÇOS MORTOS!
Dirigida por José Roberto Jardim, a Academia de Palhaços adapta "Pequenos Trabalhos para Velhos Palhaços", de Visniec, sobre três clowns que disputam uma única vaga de emprego

QUANDO sex. e sáb., às 21h, dom., às 20h; até 7/8, no CCSP. Qua. e qui., às 21h; de 31/8 a 1º/9, no Tusp
ONDE CCSP, r. Vergueiro, 1.000, tel. (11) 3397-4002; Tusp, r. Maria Antônia, 294, tel. (11) 3123-5222
QUANTO grátis
CLASSIFICAÇÃO 12 anos

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Patrícia Mattos/Divulgação
Companhia Teatro da Dispersão em montagem de O 'Espectador Condenado à Morte', de Matei Visniec
Companhia Teatro da Dispersão em montagem de O 'Espectador Condenado à Morte', de Matei Visniec

O ESPECTADOR CONDENADO À MORTE
A Cia. Teatro da Dispersão encena um julgamento absurdo, que tem como pano de fundo o regime do ditador romeno Nicolae Ceausescu

QUANDO qua. e qui., às 21h, até 25/8
ONDE no Viga Espaço Cênico, r. Capote Valente, 1.323, tel. (11) 3801-1843
QUANTO R$ 40
CLASSIFICAÇÃO 14 anos


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