Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Muylaert tem talento apagado longe de seus silêncios eloquentes

Trailer

Em "Mãe Só Há Uma" existe primeiro Pierre, adolescente sexualmente ambíguo. Ele vive com a mãe e a irmã, faz parte de uma banda de rock, gosta de se vestir de mulher, namora um rapaz do seu do grupo e com a mesma desenvoltura transa com garotas.

Quem é Pierre? A questão poderia preencher todo o filme, mas ela se torna secundária, quando se descobre que a mãe de Pierre não é bem sua mãe: ele foi roubado na maternidade.

Desde então, seu mundo vira de cabeça para baixo. "Eu é um outro" seria uma justa expressão do seu sentimento. Mas pode-se observar sua identidade a partir da noção de família: o que ela é? O que são os "laços de sangue"?

Desde então Anna Muylaert esquece o que talvez seja a personagem mais interessante do filme: a mãe que o cria, a mulher que o roubou na maternidade, a "monstra", como escreve alguém.

Pierre passa a outra família, na qual não se reconhece. Seu nome não é mais Pierre, e sim Felipe. Todos o tratam como se tivesse crescido ali, como se o pertencimento "de sangue" pudesse ser mais forte do que a fato de ter crescido acreditando-se outra pessoa.

O drama identitário acompanha os inúmeros constrangimentos que Felipe impõe à família que rejeita. Segue-se o esforço, ora afetivo (dar a ele tudo que quer, conceder-lhe tudo etc.), ora autoritário (fechar o portão do condomínio para que não saia) de adequá-lo ao novo mundo.

Pergunta-se: será mesmo esse um bom desenvolvimento do tema escolhido? Pessoalmente, admito não ter entendido aonde Muylaert pretendeu chegar ao abandonar os princípios que até aqui fizeram o melhor de seu cinema, onde mais se diz quando nada se diz, num mundo de silêncios eloquentes, e substitui-los por um desenvolvimento psicológico um tanto frouxo.

No mais, é preciso não esquecer que nessa questão, a da troca de crianças, Caetano Gotardo já realizou um episódio admirável, em que o estranhamento dessa situação resolve-se de maneira tão sintética quanto eficaz (em "O que Se Move").

Não que o talento de Muylaert tenha desaparecido. Ele parece apenas apagado sob um desenvolvimento convencional. Tanto que de tempos em tempos ressurge e produz os melhores momentos do filme. Como a bela cena em que o irmão (da nova família) aproxima lentamente a cabeça do ombro de Felipe. Sente-se ali, desenhadas numa só imagem, a solidão e o impasse dessas vidas, algo que, na maior parte do tempo, parece escapar ao filme.

MÃE SÓ HÁ UMA
DIREÇÃO Anna Muylaert
ELENCO Naomi Nero, Matheus Nachtergaele, Dani Nefussi
PRODUÇÃO Brasil, 2015, 16 anos
QUANDO estreia nesta quinta (21)


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