Folha de S. Paulo


análise

Babenco enxergou a truculência do país como poucos brasileiros

A condição de eterno estrangeiro marcou profundamente a obra de Hector Babenco.

Nascido na Argentina e naturalizado brasileiro, Babenco sempre se interessou por personagens marginais, que serviam de porta de entrada para o exercício de um olhar que enxergou a truculência do Brasil urbano como poucos cineastas nascidos aqui foram capazes.

O talento na condução da narrativa e direção de atores já era evidente em "O Rei da Noite" (1975) e "Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia" (1977). Mas foi "Pixote - A Lei do Mais Fraco" (1981) que o colocou em um outro patamar.

Hoje, 35 anos depois do lançamento de "Pixote", o impacto que o filme causou parece ter se esmaecido diante de uma realidade em alguns aspectos ainda mais brutais. Mas o filme continua sendo um espelho preciso de uma das faces mais repugnantes da sociedade brasileira: o abandono de crianças pobres.

É um filme trágico, de história trágica. Fernando Ramos da Silva, o menino escolhido para viver Pixote, aos 11 anos, morreria assassinado pela polícia de Diadema oito anos depois, em 1989. Apesar de não ter morado na rua, Fernando era de uma família muito pobre. Viveu à beira da situação de seu personagem e não conseguiu escapar de sua realidade, mesmo depois do sucesso do filme.

Em "Pixote", Babenco acompanha com realismo cru os caminhos do garoto pela noite de São Paulo, sempre ao lado de um grupo de párias. Entre eles está a prostituta Sueli, um dos grandes trabalhos da atriz Marília Pêra. É inesquecível a sequência em que Pixote mama no peito de Sueli, respiro lírico que Babenco sempre se permitia.

O próprio cineasta gostava de contar essa história: Gilles Jacob, diretor artístico do Festival de Cannes, descartou "Pixote" depois de assistir a apenas um rolo do filme. Mais tarde, diante de tudo o que aconteceu, se arrependeu profundamente (e, não por acaso, os filmes de Babenco passaram a frequentar a competição do festival).

Mesmo recusado em Cannes, "Pixote" teve uma carreira internacional brilhante. Participou da competição do Festival de Locarno, na Suíça, e conseguiu lançamento comercial nos Estados Unidos, onde acabou conquistando vários prêmios da crítica e uma indicação ao Globo de Ouro. O sucesso abriu portas para uma possível carreira internacional.

O filme seguinte de Babenco, "O Beijo da Mulher Aranha" (1985), foi filmado em São Paulo, mas falado em inglês e estrelado pelo americano William Hurt e pelo portorriquenho radicado nos EUA Raul Julia.

Molina, o personagem de Hurt, homossexual, passa o tempo contando histórias de filmes antigos para Valentin, preso político. Sonia Braga é Marta, amante de Valentin, que ele também enxerga como as personagens femininas dos filmes contados por Molina, recriados na sua imaginação. A dureza da realidade e a possibilidade de fabulação e fantasia ganham aqui uma narrativa engenhosamente intrincada. Pelo seu trabalho, William Hurt ganhou o prêmio de melhor ator em Cannes e, mais tarde, o Oscar. E Sonia Braga partiu para sua carreira internacional.

Os dois filmes que se seguiram foram produções internacionais, "Ironweed" (1987), com Meryl Streep e Jack Nicholson, e "Brincando nos Campos do Senhor" (1991), com John Litghow, Kathy Bates e um grande elenco. Os filmes fracassaram internacionalmente, mas são no mínimo interessantes.

A partir de "Coração Iluminado" (1998) quase todos os seus filmes ganharam um caráter mais autobiográfico, como "O Passado" (2007) e o agora derradeiro "Meu Amigo Hindu", lançado no começo do ano. A exceção é "Carandiru" (2003), um filme que, ainda assim, só se tornou possível graças a uma experiência profundamente pessoal: seu convívio com o médico Drauzio Varella, que tratou seu câncer e havia trabalhado como voluntário no presídio que foi palco de um dos maiores massacres da sociedade brasileira.

Babenco tinha um olhar impiedoso e muitas vezes amargo sobre a realidade brasileira, mas que reconhecia na fabulação e em fagulhas de lirismo alguma possibilidade de salvação.


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