Folha de S. Paulo


Autor é confrontado por personagens em novo livro de Bernardo Kucinski

Dizem que um autor acaba para sempre assombrado por sua obra. O desafio, depois de um livro aclamado, é fazer mais e melhor, não se repetir –e ter que lidar com os efeitos e os rótulos do sucesso.

Bernardo Kucinski, 79, que estreou na literatura aos 74 anos, depois de uma carreira dedicada ao jornalismo, vai um pouco além e promove uma discussão em público sobre seu romance.

Em "Os Visitantes", seu novo livro, ele traz o mesmo narrador de "K.", seu livro anterior –que mostra a busca de seu pai pela filha desaparecida na ditadura–, recebendo personagens do romance, que aparecem para reclamar não só do jeito como foram representados, mas também para questionar o livro e seu sucesso.

Eduardo Anizelli - 22.jun.2016/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 22-06-2016, 14h00: Retrato do escritor Bernardo Kucinski, em sua casa no bairro Pinheiros em Sao Paulo. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress, ILUSTRADA) ***EXCLUSIVO***
Bernardo Kucinski em seu apartamento, em Pinheiros

É um narrador angustiado com sua obra e sua recepção crítica, o que pode surpreender os fãs de "K." (que rendeu a Kucinski uma menção honrosa no prêmio Portugal Telecom de 2012), apressados em ver o próprio autor na história.

"Essa angústia foi um recurso para dar continuidade à narrativa. Sem ele, o texto seria uma sucessão de discussões áridas. O descaso absoluto é um elemento estritamente ficcional", afirma.

ANA ROSA

Mas é claro que a angústia não é só recurso técnico. Ele reflete uma insatisfação com "a mídia brasileira e a pobreza da crítica literária".

"'K.' repercutiu mais no exterior do que aqui. Ele saiu por uma editora pequena [a Expressão Popular] e vendeu rápido duas edições, porque falou com esse público [vítima da ditadura], isolado pela sociedade. É como se fôssemos um gueto", diz.

Ana Rosa Kucinski, irmã do autor, era professora de química na USP e militante da ALN (Ação Libertadora Nacional). Ela e o marido, Wilson Silva, foram levados em 1974 por agentes da repressão. Só em 1995 o Estado brasileiro os reconheceu como desaparecidos políticos.

Mas é possível –e desejável– transformar uma história trágica em arte? É correto oferecer prazer estético ao retratar a crueldade? É o conflito que "Os Visitantes" apresenta já no segundo capítulo, quando o narrador recebe a visita de uma amiga de Ana Rosa.

"Tinha que ser um livro sujo, como foi sujo tudo aquilo, tinha que ser como um vômito, mas você preferiu escrever um livro bonito", diz a personagem.

"Sempre existiu esse tratamento estético [da crueldade]. A arte é o que mais nos distingue como humanos. E a crueldade também. Mas não acho a estetização da crueldade como um dilema que mova ou demova um escritor", afirma Kucinski.

Para ele, o conflito está superado em "Os Visitantes". "Não há culpa em fazer arte com a maldade. A culpa está na maldade, não na sua estetização."

LUTA ARMADA

Ao escrever sobre o mal, porém, o que está em jogo é a própria sobrevivência do escritor. Kucinski lembra, por exemplo, das histórias de presos políticos que copiavam à mão clássicos do marxismo.

"Victor Klemperer [filólogo alemão] escreveu um diário magnífico [sobre o nazismo] e conta que sobreviveu porque escrevia todo dia. É o que sinto em relação a mim. Estou com quase 80 anos, sobrevivendo ao escrever", diz.

Um dos pontos mais delicados de "K.", os "justiçamentos" pela esquerda armada, volta à baila em "Os Visitantes", quando um personagem resolve questionar o autor sobre o último capítulo do livro: uma carta em que um militante questiona o líder do movimento pela execução de um companheiro –esses "justiçamentos" costumam ser usados por defensores do regime militar como argumento contra a esquerda.

"O incômodo foi causado por uma matéria da Folha ["Questão de Ordem", 17/6/2012], que tentava legitimar [a tese de que os dois lados cometiam crimes semelhantes] por meio do livro. Como dizia o Primo Levi: os dois lados caem numa armadilha, mas quem montou a armadilha foi a ditadura. Não se pode igualar os dois lados", diz.

Mas, olhando com distanciamento, a luta armada foi uma opção correta?

Os Visitantes - Novela
Bernardo Kucinski
l
Comprar

"Foi uma opção que se deu naturalmente na circunstância. Na continuidade, porém, já era um tipo de armadilha, um mecanismo psicológico de culpa. Depois de companheiros morrerem, não se podia abandonar. Deixou de ser algo político e virou um processo infrutífero, no qual se perderam muitas vidas preciosas".

OS VISITANTES
AUTOR Bernardo Kucinski
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (88 págs.)

*

RAIO X Bernardo Kucinski

NASCIMENTO

São Paulo, 1937

FORMAÇÃO

Física pela USP. Acabou fazendo carreira no jornalismo e deu aulas na Escola de Comunicações e Artes, também na USP

OBRA

"Jornalistas e Revolucionários" (pesquisa histórica, ed. Página Aberta, 1991; Edusp, 2001)

"K." (romance, ed. Expressão Popular, 2011; Cosac Naify, 2014; Cia. das Letras, 2016)

"Você Vai Voltar Para Mim" (contos, Cosac Naify, 2014)

*

LEIA TRECHO DE 'OS VISITANTES'

"Fiquei a meditar alguns segundos, depois perguntei: Já que ela não quis ler, você passou alguma coisa do conteúdo? Falei que está bem escrito, que é um texto delicado, até poético. E o que ela respondeu? Ironizou,__ você sabe como ela é sarcástica. Reconheceu que escrever bem é com você mesmo, mas tinha que ser o contrário, tinha que ser um livro sujo, como foi sujo tudo aquilo, tinha que ser como um vômito, mas você preferiu escrever um livro bonito e ilustrado por artista famoso para ganhar prêmio._

Reajo indignado. Disse-lhe: Pois saiba que a novela escreveu-se quase por si mesma, como um desses livros espíritas psicografados; e nem era novela, eram uns contos, primeiro um, depois outro, e saíam fácil, como se já estivessem prontos. A amiga esboçou um sorriso e ironizou: Você fala como se fosse uma galinha botando um ovo por dia. Também sorri com a comparação e corrigi: Não era um por dia, era um por semana, mas foi assim mesmo, como se cada um fosse um desafogo. Ela contestou: Está tão bem-acabado que não é só desafogo, você queria reconhecimento literário.

Pensei: claro que um autor busca reconhecimento (...), mas dizer que escrevi para ganhar prêmio é me chamar de oportunista."


Endereço da página:

Links no texto: