Folha de S. Paulo


tréplica

Poesia de Ana C. é insuficiente até para quem a promove

Tecnicamente, o artigo de Laura Erber ("Negar relevância a Ana C. é não conhecer discussão sobre poesia", "Ilustrada", 2.jul.2016) não deveria ser considerado uma réplica ao que escrevi sobre a poeta de "Luvas de Pelica" (1980). Redigida com um total de 470 palavras, a contestação ao meu texto acabou merecendo apenas 83 da professora de teoria do teatro. Por isso, seu artigo deveria intitular-se "A Flip não é relevante para o debate literário".

Até porque não neguei relevância à poeta homenageada: apontei, sim, a "escassa relevância literária internacional" do Brasil. E, por meio de citações encontradas nos rotineiros promotores do que Ana C. escreveu –Armando Freitas Filho, Heloisa Buarque de Hollanda, Italo Moriconi–, mostrei que mesmo eles estão conscientes da insuficiência daquela poesia. Na noite de abertura, esperava-se que o poeta de "Cabeça de Homem" (1991) tratasse da vida e da obra de Ana C.; porém, pelo que li nos jornais, preferiu falar de si e da sua poesia.

Nas 387 palavras que não refutam o que eu escrevi, Laura Erber apresenta um juízo devastador da Flip –ao informar que o evento salienta aparições performáticas de autores; não promove o encontro com a literatura; é uma vitrine das grandes editoras; cria uma ilusão da sua própria importância; é uma aliança da frivolidade cultural e do empreendedorismo turístico; um mecanismo contemporâneo de canonização mercadológica. Parece razoável aceitar, total ou parcialmente, as contundentes afirmações da professora, que, de algum modo, correspondem ao processo de "gentrification" sofrido por Ana C.

Ainda assim, nada impediria debater se o aparecimento de um livro como "Bagagem" (1976), de Adélia Prado, marcou mesmo uma diferença na dicção poética de Ana C. Que implicações –biográficas e literárias– existem numa dedicatória a Walt Whitman? Acrescento agora: em "Uma História à Margem" (2010), que contou com patrocínio da Petrobras, Chacal se refere a Ana C. como "nossa diva, nossa musa", não havendo qualquer outra menção a ela ao longo do livro. Já Armando Freitas Filho, o poeta de "Mademoiselle Furta-Cor", comenta explicitamente a "cleptomania estilística, ousada além dos limites" de Ana C., lembrada pelo jornalista Elio Gaspari, em 1999, num caso de evidente plágio em trabalho universitário.

Reúno esses tópicos, em conclusão, para contrariar Laura Erber quando escreve a seguinte incoerência: "Ana C. criou uma poesia autêntica a partir de uma poética da leitura, da tradução e do manejo de vozes, aliadas à elaboração de uma escrita intensa e intensamente consciente da experiência da linguagem que coloca o sujeito em risco."

A gramática de fato correu algum risco quando o sujeito "uma poesia" concordou com "aliadas". Mais importante, porém, é perguntar: o que vem a ser isso, "uma poesia autêntica"? E o que é "escrita intensa"? E em que versos ficou "o sujeito em risco"?

Bastaria trazer citações da poesia de Ana C. para que cada um desses carimbos –risíveis até aos que admiram a escrita de Ana C.– merecesse reconhecimento. Na ausência, constato que o desprestígio da literatura continua.

FELIPE FORTUNA é poeta, ensaísta e diplomata. Publicou recentemente "O Mundo à Solta" (Topbooks) e "Taturana" (Pinakotheke)


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