Folha de S. Paulo


tréplica

Ana C. teria herdeiros, entre os quais poetas gays da geração jovem

Como dizia Bernard Shaw, o problema com a comunicação é acreditar que ela tenha ocorrido. Suponho que Felipe Fortuna esteja esperando que eu dê continuidade à discussão sobre o valor literário da produção de Ana Cristina Cesar. Suponho também que tenha preferido contar o número de caracteres de minha resposta a refletir sobre o que ali foi exposto.

Não deveria haver grande comoção diante de um texto que descreve um evento como a Flip afirmando sua dimensão comercial. Não há novidade na afirmação de que se trata de evento voltado para a diversão, divulgação de autores e venda de livros. Ou na de que seu público majoritário tende à frivolidade da elite brasileira em geral.

Tampouco deveria ser ofensivo ou particularmente irritante ler a festa a partir de uma perspectiva mais ampla, a de um evento entre tantos outros –nacionais e internacionais– alinhados à lógica espetacular da indústria cultural e do turismo. Uma cultura contemporânea que contribui para a transformação do escritor –autor de poesia, de ficção, crítico, biógrafo etc.– em performer de suas crenças éticas e estéticas, ou, no pior dos casos, animador de festas e feiras.

No campo das artes, a deriva turística dos museus é uma discussão que já existe há décadas e não nos fez abandonar as grandes instituições museológicas nem pedir sua explosão. É desejável conviver com essa cultura sem sacralizá-la, ou frequentá-la com olhar menos rendido.

O poeta e diplomata Felipe Fortuna, em sua resposta, não levou em conta minha crítica à aliança entre o jornalismo decadente e a espetacularização da literatura, um processo de dupla redenção que merecia ser notado. Creio ser mais produtivo para o debate atual repensar o papel e o alcance da curadoria e do jornalismo não a partir de um suposto ou ingênuo critério de pureza, mas em função de suas reais autonomia e potência crítica.

No caso da homenageada, era necessário pensar cuidadosamente a questão da herança e a possibilidade que ela oferece de propor leitura menos viciada do problema da influência, uma vez que Ana C. teria também herdeiros, entre os quais poetas gays da geração jovem. Ou incorporar de modo coerente o atual debate feminista e seus impactos na abordagem da literatura, para além do mote "Flip das mulheres".

Se hoje o contrário da crítica são o amor e a amizade, e se as opções de um crítico, vistas de fora, se resumem a enaltecer ou arruinar, se tudo pode ser dito mas toda crítica é compreendida como conchavo ou leviandade, então não há debate, mas diálogo de surdos e alguma blindagem. O fato de a festa literária envolver profissionais sérios não faz dela um objeto impermeável.

Creio que um exercício de descrição dos modos de mediação da literatura seria mais necessário do que levantar a estranha lebre da "insuficiência" ou "magreza" dos livros de uma poeta. Diante desses curiosos argumentos, de fato, a motivação para redigir uma réplica stricto senso é pequena. Por fim, devolvo sua misteriosa afirmação: "Não neguei relevância à poeta homenageada; apontei, sim, a 'escassa relevância literária internacional' do Brasil".

LAURA ERBER é escritora e professora do departamento de teoria do teatro da Unirio


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