Enquanto passa um café em sua casa em Foz do Iguaçu (PR), dona Nenê questiona: "Para que lembrar disso tudo agora que ele tá no fim da reta?".
Ela acabara de saber que o marido, Argemiro Santos, 92, com quem está casada há anos, foi "resgatado" de um orfanato no Rio quando criança pela abastada família Rocha Miranda, com integrantes simpatizantes do nazismo, e levado junto a outros 49 meninos para uma fazenda em São Paulo. Lá, as crianças foram obrigadas a trabalhar por quase dez anos.
O assunto nunca havia sido revelado por Argemiro, hoje aposentado da Marinha.
Esse passado veio à tona quando ele foi localizado pela equipe do diretor Belisario Franca para "Menino 23 - Infâncias Perdidas no Brasil", que estreia nesta quinta (7).
O filme, ganhador de melhor roteiro e montagem no Cine Ceará, tem como ponto de partida a tese de doutorado "Educação, Autoritarismo e Eugenia: Exploração do Trabalho e Violência à Infância Desamparada do Brasil (1930-1945)", do historiador Sidney Aguilar Filho, aprovada em 2011 na Unicamp.
Aguilar Filho começou sua pesquisa em 1998, após ouvir uma aluna contar que havia visto "aquele símbolo alemão", a suástica, em tijolos de uma fazenda na região de Campina do Monte Alegre (SP). Depois, descobriu que o símbolo nazista também era usado para marcar gado.
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| Aloysio Silva, o menino 23, que morreu em outubro de 2015 |
Foi nesse ambiente que os 50 meninos, a maioria negros, viveram por quase dez anos na época do Estado Novo num regime de trabalho escravo. Entre as obrigações deles estava cantar o hino da Ação Integralista Brasileira, movimento político fascista.
Essa história só pôde ser contada porque Aguilar Filho encontrou Aloysio Silva, o menino 23 (eles eram chamados por números), que viveu na fazenda Santa Albertina. É o depoimento dele, morto em outubro de 2015, aos 93, que norteia "Menino 23".
LEMBRANÇA DOLOROSA
Numa cena emocionante, o documentário mostra o retorno de seu Aloysio ao Educandário Romão de Mattos Duarte, no Rio de Janeiro, de onde ele e os outros garotos foram autorizados pelo Estado a sair em 1933.
No longa, o então nonagenário lembra como Oswaldo Rocha Miranda selecionou as crianças que iriam para a fazenda: jogou um saco de balas para o alto e observou a correria para pegá-las.
Aquelas que se saíram melhor na disputa pelos doces foram escolhidas."Era que nem gado", diz Aloysio.
"Quando essa memória vai para a tela, ela passa a ser coletiva. É uma história que pertence a todos e que vai servir para que esses comportamentos e essas ideologias vistas de maneira naturalizada não aconteçam mais", diz Belisario Franca à Folha, tentando responder à pergunta inicial de dona Nenê.
Para o diretor, é bom que o filme seja lançado no atual contexto do país. "Não podemos fazer de conta que isso não existiu, que essas ideologias fascistas não tiveram espaço aqui. Somos campeões mundiais da negação. Somos uma nação dissimulada: temos a falsa democracia racial, a falsa docilidade, a falsa cordialidade", diz.
Segundo Franca, se faz necessário lembrar a década de 1930, quando o Estado brasileiro apresentou uma série de instituições ambíguas, em voga até hoje.
"É importante trazer isso para o sol. E que aquilo que tiver que secar, seque."
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| O agricultor José Ricardo Rosa, que descobriu tijolos marcados com suásticas em fazenda de SP |
OUTRO LADO
Membros da família Rocha Miranda foram procurados pelo diretor do filme e não quiseram dar entrevista.
Em novembro, Mauricio Rocha Miranda criou o blog familiarochamiranda.com para se manifestar. Na página, chama o filme de "sensacionalista". E acusa o diretor de trazer depoimentos "viciados e unilaterais".