Folha de S. Paulo


'Chega de Saudade' traz texto mais limpo e cançãografia com 600 títulos

Além do status de clássicos da música brasileira, o que mais têm em comum "Jura", do autointitulado rei do samba Sinhô, na interpretação intimista de Mario Reis, "Com que Roupa?", o primeiro sucesso de Noel Rosa, e "Se Você Jurar", de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves, um dos primeiros exemplos do samba batucado com que a chamada turma do Estácio revolucionou o gênero?

As três músicas –a primeira gravada em 1929, a segunda e a terceira, em 1931– foram muito mais importantes para a criação da bossa nova do que você pode imaginar, e por isso figuram, entre outras 600, na incrível cançãografia que Ruy Castro montou para a nova edição revista e ampliada do livro "Chega de Saudade".

Mas, espere aí. Isso não quer dizer que a bossa nova seja uma decantação de tudo o que se fez antes dela. É um gênero único. "Uma das muitas modalidades que o samba pode assumir. Digamos que seja um samba ritmicamente mais simplificado mas harmonicamente mais complexo", define Ruy.

Rafael Andrade/Folhapress
Um compacto de Chega de Saudade com o cantor João Gilberto e com dedicatória feita pelo próprio musico a um amigo e visto na casa do pesquisador e jornalista Ruy Castro, no bairro do Leblon, zona sul do Rio, em 06 de junho de 2011, ano em que o cantor baiano completa 80 anos
Compacto de 'Chega de Saudade' na casa de Ruy Castro, no Rio

A confusão reside na própria riqueza de nossos ritmos. Depois de décadas pensando e estudando o assunto, o jornalista encontrou uma explicação: "A música brasileira dividiu-se em duas grandes águas, a romântica e a de bossa. Na primeira, mais lenta e dolente, tivemos canções, valsas, modinhas, foxes, serenatas. Na segunda, mais sincopada e sapeca, o samba em suas muitas vertentes: breque, terreiro, exaltação, gafieira e, claro, a bossa nova, o sambalanço, o samba-jazz".

A CARA DE JOÃO

Para o escritor, a bossa nova era inevitável. E ficou, para a posteridade, mais com a cara de João Gilberto, não por acaso um cultor dos "sambas de bossa" produzidos entre 1929 e 1957, e, antes do próprio João, gravados por outros grandes cantores: Luiz Barbosa, Orlando Silva, Cyro Monteiro, Lucio Alves.

"Se a bossa nova tivesse mais a característica do Tom Jobim, seria mais romântica, ou mais da canção. Se fosse pelo lado do João Donato, seria mais caribenha. Se fosse o Johnny Alf, muito mais jazzística do que acabou sendo", acredita Ruy.

Autor de outro grande mergulho no mesmo período musical –"A Noite do Meu Bem: a História e as Histórias do Samba-Canção" (544 págs, Companhia das Letras)–, ele considera que uma obra completa a outra. "São gêmeos siameses. Têm o mesmo projeto editorial e são semelhantes até no peso. O ideal é que fossem lidos em sequência."

O livro lançado no fim do ano passado comprova a teoria das águas musicais: "Mostro que antes que existisse o ambiente ideal para seu desenvolvimento, que foram as boates, o samba-canção já existia. E mesmo depois da bossa nova, que para muitos o teria sepultado, ele continuou a existir, embora não chamado por esse nome".

O novo "Chega de Saudade", além da cancãografia, traz aquela é que provavelmente a maior discografia da bossa nova. Títulos que, por sorte, podem ser quase todos acessados na íntegra pela internet.

O autor não mexeu na estrutura da primeira versão nem acrescentou histórias. Cronologicamente, o relato vai de 1948, em Juazeiro, onde João Gilberto ouvia "Naná" na voz de Orlando Silva, até o início de 1967, quando saiu o álbum "Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim".

O escritor deu uma limpa no texto: reparos em datas e lugares e a retirada de expressões datadas e outras que, na edição original de 1990, vinham grafadas em itálico. "Não tirei o sabor do estilo com que o livro foi escrito. Mas ficou mais simples e sedutor, que é o que procuro hoje."

Em 1975, quando trabalhava na Bloch Editores, Ruy Castro costumava sentar-se em bancos do Aterro do Flamengo, ao lado de João Máximo (também jornalista, autor da biografia de Noel Rosa). Sonhavam, os dois, com os livros que, um dia, escreveriam.

"Estávamos lendo a biografia do Cole Porter escrita por Charles Schwartz e nos perguntávamos: como ele fez? Ora, conversando com as pessoas certas."

Foi o caminho adotado em "Chega de Saudade" que, na época do lançamento, era uma perfeita novidade em matéria de abordagem, estilo e tratamento para livros com temas musicais. Hoje, virou paradigma.

Além de conversar com os principais nomes do universo bossa-novista –Tom Jobim (nasceu com ele o estalo do livro, durante uma entrevista para a "Playboy"), João Gilberto (mais de cinco longos papos, ao telefone, de madrugada), Johnny Alf, João Donato, Ronaldo Bôscoli (a maior fonte), Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, Nara Leão–, Ruy privilegiou o que ele chama de "sinfonia de informantes".

Entre os quais estão figuras menos conhecidas como o violonista Candinho (marido de Sylvia Telles), o pintor Cravinho (amigo do peito de João Gilberto nos tempos da Bahia), o compositor Pacífico Mascarenhas (que revelou a estada de João em Diamantina e o dramático parto da famosa batida de violão), Jonas Silva (crooner dos "Garotos da Lua" e vendedor nas Lojas Murray).

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Ruy Castro
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"Foi o Mário Telles, irmão da Silvinha Telles, que me falou pela primeira vez das Lojas Murray e de sua importância na formação dos garotos que fizeram a bossa nova. Uma, até então, insuspeita escala do movimento no centro do Rio, antes da explosão em Copacabana", lembra Ruy.

CHEGA DE SAUDADE
AUTOR Ruy Castro
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 74,90 (504 págs.)


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