Folha de S. Paulo


Autor de 'Trainspotting' bebe cachaça e cerveja com pescadores de Paraty

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"Vocês vão me levar para ver o outro lado da cidade? Ótimo, mas eu quero ir a um bar e conversar com as pessoas, OK?", avisou o escocês Irvine Welsh, 58, quando saímos da requintada pousada em que se hospedou para visitar o outro lado de Paraty, uma das cidades mais violentas do Estado do Rio de Janeiro.

Convidado da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), Welsh ficou famoso após escrever o livro que deu origem ao filme "Trainspotting" (1996), que retratava o desencanto de um grupo de jovens na periferia de Edimburgo que, sem perspectivas na vida, passavam o dia tomando drogas.

"Subúrbios são parecidos. Sempre vejo algo do subúrbios de Leith (Escócia), onde nasci, quando visito um deles. Mas também vejo que cada um têm algo único, neste aqui sinto que há perigo no ambiente, mas também que as pessoas são muito amistosas e acolhedoras", disse, quando entramos no bairro de Ilha das Cobras, com suas ruas em formato de vielas, crianças brincando na calçada, muros pintados de distintas cores e bares com música alta e mesas de bilhar frequentados apenas por homens.

"Aqui é onde as pessoas realmente vivem, as que trabalham nos hotéis e restaurantes do centro? Adoro conhecer onde as pessoas moram de verdade", diz, animado.

A cada coisa que via e de que gostava – como redes confeccionadas pelos pescadores ou bonecos de papel machê feitas pelas crianças do bairro – dizia: "Brilliant" (brilhante), que no sotaque escocês soa como se fosse outra palavra.

Paramos num dos bares, escolhido por ele: "Esse aqui, esses caras parecem estar se divertindo", aponta para um dos botecos diante do rio Mateus Nunes, onde barcos de pescadores ficam estacionados.

"Minha cidade é uma cidade pesqueira também", conta Welsh, puxando papo com um pescador tímido que, encostado no balcão, pergunta de onde ele é. "Escócia? Tem peixe bom lá, né? Ouvi dizer que sim. Eu já pesquei em toda a costa do Brasil, mas queria ir pescar na Escócia."

Os dois riem, e Welsh pergunta que peixes há ali. "Tainha, robalo, camarão. Eu pesco mais camarão", diz o pescador. Ao que o escocês responde rapidamente. "Então você tem uma boa rede e pesca bem no fundo, não? Os bons camarões estão no fundo." O homem sorri e concorda. Olha para a reportagem e diz: "Ele conhece!".

Alguém traz uma tainha recém pescada para que o forasteiro veja. Ele se espanta pelo tamanho do bicho, mas logo faz uma piada: "Ele não parece estar muito feliz."

Enquanto o dono do negócio busca agradar, trazendo cachaça e carne de porco em pedaços – Welsh aceita tudo, come e bebe – outras pessoas começam a cercar o estrangeiro sutilmente.

Um homem oferece passeios turísticos, outro diz que é seu aniversário, um terceiro pergunta ao nosso motorista, que é paratiense, o que estamos fazendo ali.

Pressentindo algum possível contratempo, saímos. O bar fica na região da cidade onde atua a facção Comando Vermelho. A periferia de Paraty está dividida entre o grupo criminoso carioca e a facção paulista PCC.

Já no carro, o motorista nos informa que tinha se alarmado quando viu que um dos homens no bar estava armado, enquanto outro lhe perguntou: "será que ele quer dar um raio?", insinuando querer oferecer cocaína ao visitante. Welsh, meio brincando, meio a sério, diz: "Por que você só agora me diz isso?".

Respondo que ele está se contradizendo, pois vinha dizendo nas entrevistas, inclusive à Folha, que estava "limpo" há muito tempo. Welsh apenas ri de forma misteriosa.

Desde que trocou a Escócia pelos EUA, Welsh diz não estar mais consumindo drogas, faz esportes e casou-se com uma americana. Os dois vivem em Chicago.

Na próxima parada, no bar conhecido como Laricão, na entrada da cidade, Welsh logo reconhece o brasão do Flamengo na parede. "Eu vi o Flamengo ganhar do Botafogo por 3 a 0, no Maracanã, nos anos 1990."

Apesar de ser um torcedor fanático do Hibernian, ele brinca: "viu? Tenho uma história com o Flamengo, entrei aqui, vi o símbolo e me emocionei."

Pergunto se ele sabe quem é Garrincha, ex-jogador do Botafogo. "Sim, o baixinho? Era uma espécie de Maradona antes de seu tempo, e bebia muito. Era um gênio."

Enquanto vemos, pela TV do bar, as seleções da Bélgica e do País de Gales entrando em campo na partida de sexta (1) da Eurocopa, Welsh comenta como o futebol está diferente hoje em dia, com jogadores muito bem-comportados.

"Para ser realmente bom nisso você precisa ser um pouco psicopata, um pouco louco. Maradona tinha isso. Garrincha também."

Quando começa a tocar o hino de Gales, porém, Welsh para de falar. "Estou emocionado por eles", diz. Os galeses vêm fazendo um ótimo torneio. Nesse dia, justamente, eliminaram os belgas e passaram para a semifinal do torneio.

Welsh se anima com a partida: "Eu preciso ver esse jogo. Podemos ficar aqui e assistir?", diz. Respondo que fiquei de devolve-lo na pousada, porque ele tem outros compromissos arranjados por sua editora. "Eu vou me rebelar, vou para o meu quarto ver isso", ri. E acrescenta. "Na verdade, vou estabelecer um novo padrão para entrevistas com jornalistas. Só podem acontecer em bares, com cachaça e jogo de futebol."

Um homem todo tatuado, encostado no balcão, chama Welsh e aponta admirado para a tatuagem no braço esquerdo do escocês: "essa é old school, né?". "Yeah, Yeah, old school", responde Welsh, querendo ver as do sujeito. Pergunto o que ele faz. "Me chamo Alexandre. Sou tatuador."

Quando traduzo a resposta para Welsh, ele diz: "achei que você tinha gostado de mim, mas o que quer mesmo é arranjar um cliente, ora".

Olhamos em volta e, novamente, percebemos que no bar só há homens. "Parece que estou na Escócia. Mas isso é uma consequência de vivermos numa era pós-industrial, são sequelas do tempo industrial. Há algo de nostálgico nisso."

Toda vez que é perguntado sobre o Brexit, Welsh faz alguma piada. Foi o que aconteceu em sua mesa na Flip, quando alguém da plateia perguntou o que os personagens de "Trainspotting" pensariam sobre o plebiscito que decidiu que o Reino Unido deixaria a União Europeia. "Eles estariam tão drogados que não iam se importar", respondeu.

No carro, voltando para a pousada, explicou o que realmente pensa. "Acho que é algo bom para a democracia, mas ruim para a economia." Crê que os ingleses deram "um recado claro" de que querem seguir essa linha nacionalista de política, e que, por conta disso, a Escócia não tem mais por que continuar unida a eles. "Depois disso, realmente não faz mais nenhum sentido seguir junto com os ingleses."

Defende que haja logo um referendo e que a Escócia seja um país independente.

"Quando sairmos do Reino Unido, seremos bons no futebol outra vez, e vamos ensinar o Brasil a jogar bem de novo."


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