Folha de S. Paulo


Progresso que a humanidade busca levará à destruição, diz bielorrussa

Keiny Andrade/Folhapress
A jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch fala sobre
A jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch durante a Flip

"A humanidade tomou o lugar errado dentro da natureza. É ingenuidade usar a força dentro da natureza", disse a Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch, 68, autora de livros como "Vozes de Chernobyl", neste sábado (2) na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).

Em palestra lotada que emocionou a plateia dentro e fora da Tenda dos Autores, a escritora disse que vivemos uma "era das tragédias". E que acidentes como os de Chernobyl, Fukushima (Japão) ou as mencionadas pelo mediador Paulo Roberto Pires ocorridas no Brasil –a do césio em Goiânia, 1987, e a de Mariana, no ano passado– mostram que o "progresso que a humanidade tanto está buscando nos levará à autodestruição."

E acrescentou: "Vivemos uma época em que as tragédias não têm limites, nem fronteiras."

A bielorrussa, principal atração desta edição do evento literário, também contou sobre a experiência de escrever sobre a Segunda Guerra e sobre o Afeganistão.

Disse que não costuma fazer entrevistas, mas sim conversar com as pessoas, até ganhar sua confiança. E que geralmente quem conta as histórias humanas, que mais interessam, são as mulheres.

"Quando você lê os jornais, ou ouve os homens, você tem um tipo de informação muito dura. Se você entra na casa de uma mulher, pergunta sobre os netos, sobre as coisas da casa, com tempo ganha sua amizade e começam a surgir as histórias humanas. São essas histórias que me interessa coletar."

DESDE PEQUENA

Ela falou que o gosto por ouvir histórias começou na infância, quando morava em uma aldeia na Bielorrússia e só tinha os livros como companhia. Ela saía na rua e ouvia mulheres comentarem a ausência dos maridos que haviam ido para a guerra. "Essas conversas eram tão mais fortes que a escrita dos livros que isso me marcou para o resto da vida."

Para ela, sempre há algum segredo, alguma coisa que você tem que buscar nas pessoas. Ao lembrar o relato de mulheres que foram à Segunda Guerra Mundial e reclamaram de ter passado quatro anos usando cuecas, comentou: "Existiam duas verdades, uma que era a da época, e outra a do ser humano. Eu busco a verdade do ser humano."

Esse contato mais profundo com o ser humano foi o que a afastou do jornalismo, disse. "É uma profissão interessante, mas os jornais refletem principalmente informações banais, algo supérfluo. Me sentia limitada", afirmou. "Ouvir as vozes dos homens, das mulheres, dessa vida sem propaganda, sem autocrítica. Quando a pessoa conversa com amigo, parente, um ser humano livre na alma, ele se expressa livremente."

Svetlana ressaltou que tenta passar a beleza que existe na vida das pessoas, o amor, naquilo que escreve, mesmo convivendo com o horror. Por isso, sua obra não é uma "coleção de tragédias". "Se meus livros não falassem de amor, ninguém conseguiria ler nem um parágrafo."

GERAÇÃO PERESTROIKA

Svetlana falou de seu retorno à Rússia, depois de viver mais de 11 anos fora do país. "Você se dá conta de que nossa cultura, nossa mentalidade é muito diferente do resto do mundo, não é fácil que nos adaptemos".

Apesar de fazer críticas a Putin, acha que é melhor estar no país. Mas acrescentou a decepção com a luta de sua geração. "Sou da geração da perestroika, e nós fomos derrotados. Porque falávamos animados de democracia na cozinha, mas quando saíamos às ruas as pessoas queriam uma geladeira nova, consumir coisas. A verdade sobre os gulags chegou tarde demais."

E concluiu que sua geração não entendeu que "era preciso ainda lutar para manter a liberdade".

O próximo projeto da escritora não será sobre guerras ou tragédias. Ela contou já não ter mais forças para "ver corpos aos pedaços". E citou uma passagem, no Afeganistão, quando comentou com um coronel sobre a beleza de uma arma, e ele a levou para ver "os soldados que aquela arma havia matado".

Ao chegar lá, Svetlana contou ter desmaiado por conta da visão dos corpos destroçados num calor de 50 graus. "Como faço numa situação dessas, pensei. Sabia que tinha que voltar e escrever sobre isso. Mas talvez já não consiga mais."

Ao final da palestra, o público aplaudiu a escritora de pé. Do lado de fora, havia 1.800 pessoas assistindo pelo telão, segundo a organização.


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