Folha de S. Paulo


RÉPLICA

Negar relevância a Ana C. é não conhecer discussão sobre poesia

Acreditar que na Flip aconteça algo de muito relevante para o debate literário contemporâneo é como acreditar que uma feira de arte irá revelar o artista contemporâneo mais crítico de sua época e simultaneamente vendê-lo.

A festa literária tampouco é uma Bienal de arte: nessas os artistas exibem seus trabalhos e o espectador tem ali efetivamente a chance de encontro com o acontecimento artístico. Diferente da exposição, a festa literária não proporciona um encontro com a literatura, mas com a figura dos autores em breve aparições performáticas.

A Flip cumpre um papel que os jornais já não cumprem, de divulgação e glamourização da literatura. Cria um certo desejo de literatura, algo como a ideia de que literatura deve ser bacana e preciso estar perto dela. Interfere no mercado, gera visibilidade.

Mas nada disso é relevante para a literatura que se escreve ou para a crítica que dela se ocupa. A festa é uma vitrine das grandes editoras, assim como as feiras de arte são das grandes galerias.

A Flip mobiliza fortemente a mídia brasileira que cria uma ilusão de importância que o evento não tem. Por que é difícil para a mídia assumir sem complexos que é um evento de aliança entre uma certa frivolidade cultural e o empreendedorismo turístico?

A Flip é um mecanismo contemporâneo de canonização mercadológica. As comemorações servem aos projetos de reedição dos homenageados. Está sendo assim com Ana C. Não faz sentido requentar nos jornais o debate sobre cânone literário sem levar em consideração o sistema de canonização forjado pelo próprio mercado.

Felipe Fortuna, ao questionar a pertinência da escolha da homenageada opera com noção de cânone alheia ao modus operandi mercadológico e distante da compreensão dos sistemas de legitimação de autores contemporâneos, especialmente os de poesia.

Negar a relevância de Ana Cristina Cesar como ele faz é desconhecer a discussão atual sobre poesia e seu lugar nela. Não se trata de admirá-la como admiramos os clássicos modernos, mas saber reconhecer nessa escrita a produção de gestos relevantes para o poema em suas mutações recentes.

Ana C. criou uma poesia autêntica a partir de uma poética da leitura, da tradução e do manejo de vozes, aliadas à elaboração de uma escrita intensa e intensamente consciente da experiência da linguagem que coloca o sujeito em risco.

A Flip não irá alterar substancialmente a maneira de ler essa obra, mas divulgará seus livros e sua imagem.

Chamada Flip

Já não se espera que o curador de uma Bienal possa propor mais do que um recorte a partir das questões que informam o seu olhar.

Por que então acreditar que o curador da festa literária sustenta uma visão onipotente capaz de renovar drasticamente a compreensão do fato literário? Sobretudo se a curadoria do evento tem pouca autonomia e é determinada –mais que numa Bienal– pela necessidade de aquecimento do mercado?

LAURA ERBER é escritora e professora do Departamento de Teoria do Teatro da Unirio


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