Folha de S. Paulo


Depoimento

Consuelo foi única de sua geração a manter o sangue nos olhos

Consuelo de Castro descobriu-se dramaturga depois de ser testemunha e vítima da invasão da Maria Antônia pelo exército em 1968. Imortalizou aquele episódio em seu primeiro texto, "Prova de Fogo" (também conhecido como "Invasão dos Bárbaros").

José Celso Martinez Correa começou a ensaiar, mas a censura proibiu. Uma montagem clandestina no Tusp (Teatro da Universidade de São Paulo), dirigida por Tim Urbinati, é peça chave da memória do teatro de resistência dos anos 1970.

Só viria a ser montada profissionalmente em 1993. Assinei a direção do espetáculo, que ocupava o próprio prédio da Maria Antônia, assim que ele foi devolvido para a USP e antes da reforma. Dan Stulbach vivia o protagonista inspirado em Zé Dirceu; Adriana Londoño, as milhares de moças daquela e das gerações seguintes a se apaixonarem por nossa promessa de Guevara. Consuelo defendeu até o fim seu colega e ídolo, mesmo depois que o mundo lhe caiu sobre a cabeça.

Fidelidade é uma palavra chave para se entender a personalidade e a obra de Consuelo. Assim como integridade. Briguenta, corajosa, boca solta, Consuelo colecionava paixões e desafetos no mesmo ritmo.

Seus dois textos seguintes, "À Flor da Pele" e "Caminho de Volta", levaram-na, ainda na primeira casa de seus vinte anos, ao grupo dos principais dramaturgos brasileiros. Suas colegas de geração, Leilah Assupção e Maria Adelaide Amaral, grandes autoras, obtiveram mais sucesso ao longo de carreiras melhor estruturadas. Isabel Câmara, por sua trajetória pessoal, ocupou o lugar mítico de gênio desconhecido.

Para o bem e o para o mal, só Consuelo manteve até o fim o sangue nos olhos, a vontade de brigar, a alta voltagem emocional de seus primeiros textos. Talvez por isso, a menor visibilidade e reconhecimento, fora da classe teatral.

Seus excelentes diálogos e sua aguda percepção dos meandros das relações humanas garantem a permanência de sua obra. Seus textos continuarão a ser montados. Talvez até mais, se a tradição de revalorização dos autores post-mortem se mantiver.

Só não teremos mais o prazer de discutir com Consuelo, aguentar suas malcriações e loucuras, para poder, ao final, receber um abraço conciliador com voltagem afetiva duplicada. Consuelo de Castro é daquelas dramaturgas e pessoas que não economizam energia —sua obra e a memória que nos deixa o provam. A vida é dura para os que não amansam.

AIMAR LABAKI é dramaturgo, roteirista e diretor


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