Folha de S. Paulo


Pivô de esquema que fraudava a Rouanet devolvia verba a mecenas

Nelson Antoine/Folhapress
Agentes chegam à Polícia Federal, na Barra Funda, com detido na operação Boca Livre
Agentes chegam à Polícia Federal, na Lapa, com detido na operação Boca Livre

Os propósitos do grupo Bellini Cultural, —principal alvo da operação Boca Livre, que investiga fraudes na Lei Rouanet, pareciam nobres.

Mas os recursos captados via renúncia fiscal para projetos como espetáculos para crianças e livros que deveriam parar em bibliotecas públicas acabavam beneficiando os próprios patrocinadores, em eventos corporativos com bandas famosas ou brindes para seus clientes.

O ESQUEMA DA OPERAÇÃO BOCA LIVRE

A Polícia Federal deflagrou na terça (28) uma operação que visa as atividades de ao menos 12 empresas que se beneficiaram de recursos captados via lei de incentivo cultural em um esquema intermediado pela produtora paulistana Bellini.

Foram detidas 14 pessoas, incluindo o dono do grupo, Antonio Carlos Bellini.

"As empresas ganhavam duplamente na medida que eram beneficiadas com as deduções de imposto de renda. Além disso existia a contrapartida para que elas patrocinassem os projetos", diz Karen Louise Kahn, procuradora à frente da investigação no Ministério Público Federal, que denunciou a Bellini.

A produtora cultural, segundo o inquérito, chegava a devolver parte do valor captado aos diretores das empresas como gratificação por ter financiado suas propostas.

EVOLUÇÃO DOS GASTOS DA ROUANET -

EVOLUÇÃO DOS GASTOS DA ROUANET - Valores em R$ milhões

SHOWS E PIADAS

Um dos beneficiários foi Odilon Costa, diretor da farmacêutica Cristália. O laboratório patrocinou um projeto que previa três shows da Orquestra Sinfônica Nacional para popularizar a música instrumental.

O MPF, no entanto, diz que os recursos bancaram um show do Jota Quest em um congresso de anestesiologia em 2014, no Recife. A orquestra também se apresentou nesse evento, privado, patrocinado pelo laboratório.

O Jota Quest tocou também num show fechado para 4.000 convidados da rede atacadista Roldão, mecenas de um programa que prometeu quatro concertos da Orquestra Villa-Lobos. Só houve um, para servir de prova ao Ministério da Cultura.

A orquestra Villa-Lobos informou que se apresentou para comunidades carentes e ONGs, conforme solicitado pelo contratante. Procurado por meio de sua assessoria de imprensa, o Jota Quest não comentou o caso.

Em alguns casos, a verba liberada pela Rouanet a montadora Toyota aprovou um projeto para "retratar a cultura regional e as belezas naturais dos Estados de Alagoas e Pernambuco", mas imprimiu apenas metade do que previa o projeto e ficou com todo o material, que deveria ter parte distribuído.

Até show de comédia stand-up foi pago com dinheiro público. O escritório de advogados Demarest contratou o humorista Fábio Porchat para celebrar os 68 anos do escritório -o valor da apresentação foi deduzido do imposto de renda, segundo a Receita.

À Folha, Porchat diz ser "contratado para dezenas de trabalhos", e que é "impossível eu saber a procedência do dinheiro dos meus contratantes. Como não sabia desse".

De fato, a menos que o artista esteja envolvido com a captação para um projeto próprio, dificilmente saberá a origem de seu cachê.

Procurados desde terça (28), os advogados que representam a Bellini Cultural não responderam à reportagem.

OUTRO LADO

Empresas citadas no esquema de desvios da Lei Roaunet por terem contratado a Bellini Cultutal informaram nesta quarta (29) que não são o alvo da investigação federal, mas que estão dispostas a colaborar com as autoridades no que for preciso.

O laboratório Cristália, para o qual o detido na operação Odilon Costa Filho trabalha, informou, em nota, que "desconhece qualquer ato ilícito realizado por ele e diante da sua idoneidade não crê possa ter havido". A empresa afirma, ainda, que "não estava ciente de qualquer irregularidade" nos contratos.

KPMG, Roldão, Lojas CEM, Grupo NotreDame Intermédica e Cecil dizem que forneceram os documentos solicitados pela PF. O escritório de advocacia Demarest também informou que "continuará a colaborar com a investigação" e que não "cometeu qualquer irregularidade".

Colorado e Toyota afirmaram estar "à disposição". A franquia AlphaGraphics, assim como a Takeda, dona da Nycomed, dizem que não receberam notificação oficial. Já a Scania diz não poder comentar "investigação em curso".

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COMO TRAMITA UM PROJETO NA ROUANET

1. Envio
O envio da proposta é feito eletronicamente, pelo Salic (Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura), do Ministério da Cultura. Nela, devem constar orçamento, dados do proponente, currículos das pessoas envolvidas na realização do produto cultural etc.

2. Recebimento
A proposta é recebida pela Sefic (Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura), braço do MinC responsável, entre outros, pela gestão de projetos inscritos na Lei Rouanet. A Sefic faz a análise de admissibilidade –ou seja, checa os documentos enviados pelo proponente. Em seguida, encaminha para uma unidade técnica: Funarte, Ibram, Iphan, Fundação Palmares, Fundação Casa de Rui Barbosa ou Fundação Biblioteca Nacional, dependendo do segmento cultural.

3. Parecer
Neste momento, a proposta se torna projeto –ou seja, é elegível a passar pelo trâmite de avaliação de um parecerista. O parecerista é selecionado pela unidade técnica, sem que o proponente saiba sua identidade, de acordo com Carlos Paiva, ex-titular da Sefic. O parecerista avalia o orçamento, realiza cortes, faz questionamentos (anonimamente) ao proponente para esclarecer dúvidas... Ao fim deste processo, o parecerista diz se é favorável ou desfavorável à aceitação do projeto, e encaminha sua análise à Cnic (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura).

4. Cnic
O colegiado é formado por 21 representantes de artistas, empresários e sociedade civil de todas as regiões, escolhidos pelo ministro da Cultura, com base em lista de 42 nomes indicados por 28 entidades habilitadas. O mandato é de dois anos. Eles discutem os projetos, sempre considerando os pareceres que vieram das unidades técnicas. Também podem efetuar cortes, pedir mais informações... Uma vez por mês –ou 11 vezes ao ano–, a Cnic se reúne para decidir quais projetos são aprovados –e quais valores eles podem captar.

5. Sefic
Após a decisão da Cnic, o projeto é submetido à decisão do secretário de Fomento e Incentivo à Cultura. Em caso de aprovação total ou parcial, a decisão é ratificada por portaria e publicada no Diário Oficial da União. A partir deste momento, o proponente pode captar recursos em troca de isenção fiscal aos patrocinadores.

6. Passar o chapéu
Conseguir empresas que invistam em projetos culturais –mesmo com isenção fiscal como contrapartida– é a parte mais complicada. Em 2015 dos 6.194 projetos aprovados, 50,8% conseguiram alguma captação –muitas vezes, apenas parcial.

7. Acompanhamento do MinC
Desde a captação até o fim da execução, o MinC faz vistorias in loco em alguns projetos. Contudo, segundo Paiva, apenas uma amostragem passa pela vistoria. O motivo: o MinC não disponibiliza de mão de obra para acompanhar a execução de todos os projetos, que são na casa dos milhares –em 2015, a média de aprovação foi de 516 projetos/mês.

8. Prestação de contas
Após a execução do projeto, o proponente deve prestar contas ao MinC. Isso se dá por meio de relatório de gastos e apresentação de notas fiscais, bem como dos resultados do projeto. Uma equipe da Sefic faz a avaliação da prestação de contas e pode aprová-la (e o projeto está encerrado), aprová-la com ressalva (quando a aplicação de recursos é consistente, mas o resultado é insatisfatório) ou reprová-la (quando a aplicação de recursos é inconsistente). Neste caso, o MinC exige o ressarcimento do valor, que é destinado ao Fundo Nacional da Cultura. Se o proponente não acatar o pedido em 30 dias, o MinC instaura Tomada de Contas Especial junto ao TCU (Tribunal de Contas da União). O MinC aplica, ainda, a sanção de inabilitação –ou seja, o proponente fica três anos sem poder captar recursos da lei de renúncia fiscal.

Colaboraram CAROL PRADO, GABRIELA SÁ PESSOA e GUILHERME GENESTRETI


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