Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Escolha de Ana Cristina Cesar é marca do desprestígio da literatura

"Take it for granted" –assim escreveria, sem ponto de exclamação, em bom inglês, Ana Cristina Cesar (1952-83) aos que reclamassem da homenagem à sua obra na Flip 2016. Uma carta com remetente explícito e destinatário certo, ao contrário dos poemas e da correspondência que, em seus livros, escondem a persona de quem envia e a identidade de quem recebe.

A escritora traduziria a frase para o português: é um fato consumado, são favas contadas, aceite com naturalidade a hipótese de que os livros mínimos que escreveu merecem, sim, uma celebração à altura das que já foram prestadas a Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Nelson Rodrigues. Diadorim se faz mulher, Macabéa mal consegue e Dorotéia agora é pura.

Paradoxalmente, a principal discussão em torno da "iniciativa ousada" (como classificou Italo Moriconi neste jornal) de homenagear a magra obra de Ana C. consistiria em entender e dimensionar a grandeza dos seus escritos para a sua geração e para as gerações vindouras.

Um dos mais envolvidos na homenagem, o poeta Armando Freitas Filho, expressou alguma circunspecção: no prefácio a "Escritos no Rio" (1993), Ana C. é "poeta importante de sua geração", não a expoente ou a maior, mas "uma promessa que se cumpriu suficientemente".

E tem razão o poeta de "À Mão Livre" quando escreve, em 1985, ainda sob forte impacto, que "a morte repentina de AC fez com que tudo o que se relacionasse a ela ficasse em suspenso, indefinido".

De fato, a construção da figura literária de Ana C. é toda póstuma: os guardiães dos textos retirados de gavetas, escaninhos e baús reconhecem a fragilidade do material. E mesmo um livro publicado em vida, como "Cenas de Abril" (1979), foi considerado, num esboço biográfico por Italo Moriconi, como "catarse de adolescência".

Já Heloisa Buarque de Hollanda declarou gostar "do conjunto de sua obra mais do que de poemas ou cartas independentes": trata-se de uma percepção consistente se comparada à de quem escreveu, na antologia "Esses Poetas", "não me interessaram todas as vozes que poderiam ser consideradas por revelarem um bom desempenho literário".

Novamente, a língua inglesa é útil aqui: o que agora acontece com a literatura de Ana C. é um processo de "gentrification". A palavra, muito usada no urbanismo, significa a revalorização de uma área por meio do deslocamento forçado dos seus moradores, que cedem espaço para moradores mais afluentes e para reformas que deixam as vias e os prédios mais limpos e preservados sob novas tintas.

Nesse processo, faltará um pouco de tudo: com que radicalidade se podem tratar os aspectos biográficos de Ana C.?

Nos "Escritos no Rio", em comentário sobre a chamada literatura marginal, a poeta fez referência ao "caso de Torquato Neto", ao identificar a grande ocorrência, naquela geração, de "internamento, desintegrações e até suicídios": os textos de "'Os Últimos Dias de Paupéria' foram por algum tempo lidos como bíblia pelas novas gerações", na sua avaliação. O tema do suicídio seria citado outra vez numa análise sobre a poesia de Angela Melim.

Mas a quem competiria, na Flip, tratar disso? E da importância de Adélia Prado, que estreou bombasticamente com "Bagagem" (1976) –marcando diferenças no discurso poético em relação, por exemplo, a Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa?

Em troca, haverá mais "gentrification" –uma delas, na apresentação das denominadas herdeiras de Ana C. São escritoras –Annita Costa Malufe, Laura Liuzzi e Marília Garcia– que se resignaram ao epigonismo em torno a uma mesa intitulada "A Teus Pés". Atitude que contraria a própria Ana Cristina Cesar, para quem a literatura feminina "não é necessariamente escrita por mulher".

Seria preferível debater a relação da poeta de "Luvas de Pelica" (1980) com a poesia de Walt Whitman. Mas, de novo, "gentrification". Álbuns de fotografia da poeta deverão ser lançados para realçar a pequena obra literária.

Mais do que passar por leitor autoritário, munido de critérios arcaicos, percebo o verdadeiro "take it for granted" da Flip 2016: é a marca do desprestígio da literatura nos meios de comunicação.

Se houvesse debate, se houvesse mercado para suplementos literários, talvez a escolha fosse outra. Como nada disso existe agora, restam acusações de parte a parte: serão machistas, serão conservadores os críticos de Ana C.?

Num país como o Brasil, de escassa relevância literária internacional, não há problema em ousar a homenagem a uma escritora que, morta precocemente, tem sua posteridade tratada por amigos e admiradores.

Minha proposta modesta é que, em breve, a Flip também celebre os grandes compositores da música popular brasileira, seguindo uma ideia em vigor, sintetizada por Heloísa Buarque de Hollanda: "Em caráter irrevogável, a distinção entre a poesia escrita, a cantada e a visual não se sustenta mais como defensável".

Essa futura Flip poderia começar pelo cânone, com Noel Rosa, em vez de Jorge de Lima, e só então avançar em direção ao sertanejo universitário.

FELIPE FORTUNA, 53, é poeta, ensaísta e diplomata. Publicou recentemente "O Mundo à Solta" (Topbooks) e "Taturana" (Pinakotheke), ambos de poemas.


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