Folha de S. Paulo


Houve falha de fiscalização por parte do MinC, diz Polícia Federal

Integrantes do Ministério da Cultura podem ter facilitado o esquema de fraudes à Lei Rouanet, segundo a Polícia Federal. A operação Boca Livre, que investiga o desvio de R$ 180 milhões de recursos federais em projetos culturais, foi deflagrada na manhã desta terça (28).

"Houve no mínimo uma falha de fiscalização por parte do MinC", disse Rodrigo de Campos Costa, delegado regional de combate ao crime organizado, durante coletiva realizada na manhã de terça na Superintendência da Lapa da Polícia Federal, na zona oeste de São Paulo.

Nelson Antoine/Folhapress
Agentes chegam à Superintendência da Polícia Federal, trazendo detido na Operação Boca Livre
Agentes chegam à Superintendência da Pol'ícia Federal, trazendo detido na Operação Boca Livre

Policiais federais e servidores da Controladoria Geral da União cumprem 14 mandados de prisão temporária e 37 mandados de busca e apreensão em São Paulo, Rio de Janeiro e no Distrito Federal. Eles foram expedidos pela 3ª Vara Federal Criminal em São Paulo.

Entre os alvos de busca está o Grupo Bellini Cultural, que atua há 20 anos no mercado e aparece como o principal operador do esquema.

De acordo com investigadores, Antonio Carlos Belini Amorim usou recursos públicos para fins pessoais, entre eles o de para pagar despesas do casamento de um familiar. A festa de luxo aconteceu na praia Jurerê Internacional, em Florianópolis. Ele e a mulher foram detidos na operação, que também apreendeu uma BMW na casa do casal.

Também são citados o escritório de advocacia Demarest e as empresas Scania, KPMG, Roldão, Intermédica, Laboratório Cristalia, Lojas Cem, Cecil e Nycomed Produtos Farmacêuticos –essas empresas teriam sido as patrocinadoras dos projetos que são investigados no esquema comandado pela Bellini.

Segundo a Polícia Federal, o grupo fraudava a Rouanet desde 2001, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Na época, o ministro era Francisco Weffort. Desde então, a pasta foi ocupada por outros cinco nomes: Gilberto Gil, Juca Ferreira, Ana de Hollanda, Marta Suplicy e Marcelo Calero.

Todos os 14 mandados de prisão expedidos nesta manhã foram feitos contra integrantes do grupo Bellini. Já os 37 mandados de busca e apreensão de documentos abarcaram também o Ministério da Cultura.

Com a investigação sob sigilo, a Polícia Federal sequer citou os nomes dos envolvidos no esquema ou das empresas durante a coletiva de imprensa. Quando questionado sobre qual projeto cultural embasou o casamento, por exemplo, o delegado disse que não poderia informar.

COMO O GRUPO ATUAVA

Segundo as investigações da Polícia Federal, o grupo Bellini Cutural propunha projetos culturais junto ao Ministério da Cultura e, com a autorização para captar recursos, procurava a iniciativa privada. As fraudes, então, ocorriam de diversas maneiras, como a inexecução de projetos, superfaturamento, apresentação de notas fiscais relativas a serviços/produtos fictícios, projetos simulados e duplicados, além da promoção de contrapartidas ilícitas às incentivadoras.

A investigação constatou que eventos corporativos, shows com artistas famosos em festas privadas para grandes empresas, livros institucionais, além do casamento, foram custeados com recursos públicos.

O grupo teria chegado a produzir, por exemplo, livros com duas capas diferentes (uma para o patrocinador e outra para a prestação de contas), entre outros desvios.

Boa parte dos projetos que receberam autorização do MinC para captar recursos tinha valor muito aquém do que o efetivamente prestado em notas fiscais. Já as empresas patrocinadoras ganhavam duplamente: com a dedução fiscal (leia abaixo como funciona a Lei Rouanet) e com eventuais contrapartidas oferecidas pelo grupo Bellini.

Segundo a Polícia Federal, as investigações prosseguirão para apurar a suposta participação de membros do Ministério da Cultura, além de outros delitos que possam ter sido cometidos dentro desse mesmo esquema.

Pouco antes da coletiva de imprensa, o ministro da Justiça do governo interino, Alexandre de Moraes, que estava no local para falar de novo laboratório da PF, se disse indignado com o esquema.

"Não é possível que tanto dinheiro assim num largo tempo no país tenha sido desviado sem que os mecanismos internos tivessem detectado isso."

Na semana passada, a Folha revelou que o Ministério da Cultura precisará de pouco menos de 19 anos para terminar a análise de prestações de contas de projetos aprovados na Rouanet apenas nos 20 primeiros anos de existência da lei.

OUTRO LADO

A reportagem tentou falar com a família de Antonio Carlos Bellini em sua residência, em um condomínio de apartamentos de alto padrão, no Morumbi, zona oeste de São Paulo. Foi recebida por um dos filhos do casal, adolescente, e pela diarista.

Eles afirmaram que o empresário saiu de casa pela manhã em direção à sede da Polícia Federal, na Lapa, e não voltou. Os advogados de Belllini, Eduardo Zynger e Maria Elizabeth Queijo, passaram o dia na Superintendência da Polícia Federal e não retornaram os pedidos de entrevista da reportagem.

O advogado de Odilon Costa Filho, José Luís Oliveira Lima, também não quis se manifestar sobre a investigação e a prisão de seu cliente, que está na carceragem da Polícia Federal, em São Paulo.

A assessoria de imprensa das Lojas Cem disse que a Polícia Federal esteve na empresa "solicitando documentos e informações sobre empresas que lhe prestaram serviços no âmbito da Lei Rouanet". Segundo a nota, a empresa colaborou com a busca e apreensão.

A nota acrescenta ainda que "os projetos culturais nos quais investimos foram feitos, de nossa parte, dentro da mais absoluta regularidade" e que a postura das Lojas Cem "com todas as pessoas e instituições com as quais se relaciona é de total transparência e completa lisura".

O Grupo NotreDame Intermédica, que também foi alvo da busca e apreensão nesta terça-feira, diz que os policiais federais foram até a sede da empresa para a "coleta de documentos e informações relacionados a empresas terceiras de marketing de eventos (alvos da investigação) que prestaram serviços ao Grupo NotreDame Intermédica no âmbito da Lei Rouanet".

Segundo a nota, "o Grupo NotreDame Intermédica informa que não é objeto de investigação na denominada Operação Boca Livre conduzida pela Polícia Federal e enfatiza que não cometeu qualquer irregularidade". A nota da assessoria de imprensa diz ainda que o grupo colaborou e continuará colaborando com a investigação.

A KPMG no Brasil diz, em nota, que não é objeto de investigação na Operação Boca Livre e "o fato da PF comparecer ao nosso escritório se deu pelo cumprimento de diligência para coletar documentos referentes a contratos com empresas alvos da investigação e que prestaram serviços para a KPMG no apoio a projetos culturais".

A Roldão Atacadista afirmou em nota que "contratou a Bellini Eventos Culturais para a realização de dois projetos culturais e que, na manhã de terça (28), foi requerida pela Polícia Federal, no âmbito da Operação Boca Livre, a apresentar a documentação referente a esses serviços. A empresa informa que não é alvo da operação e que já entregou à força-tarefa todos os documentos solicitados. Por fim, reforça que está colaborando com a investigação, à disposição de todas as autoridades para prestar quaisquer esclarecimentos e que não admite qualquer tipo de irregularidade ou ilegalidade em suas atuações".

As empresas Cecil, Nycomedes Produtos Farmacêuticos e Laboratório Cristália, que também foram alvos de busca e apreensão na terça-feira, não atenderam os pedidos de entrevista da reportagem.

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ENTENDA A LEI ROUANET

O que é a Lei Rouanet?

Sancionada pelo presidente Fernando Collor em 23 de dezembro de 1991, a lei 8.313 instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, que implementou mecanismos de captação de recursos para o setor cultural. Um deles é o incentivo à cultura, ou mecenato (que popularmente ficou conhecido como Lei Rouanet).

Como funciona o incentivo cultural?

O governo federal permite que empresas e pessoas físicas descontem do Imposto de Renda valores diretamente repassados a iniciativas culturais, como produção de livros, preservação de patrimônios históricos, festivais de música, peças de teatro, espetáculos de circo, programas audiovisuais etc. Ou seja, em vez de pagar o imposto da totalidade, você reverte parte dele a um projeto cultural.


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