Folha de S. Paulo


PF deflagra operação para investigar desvio de R$ 180 mi na Lei Rouanet

Nelson Antoine/Folhapress
Agentes chegam à Polícia Federal, na Barra Funda, com detido na operação Boca Livre
Agentes chegam à Polícia Federal, na Lapa, com detido na operação Boca Livre

A Polícia Federal deflagrou nesta terça (28) a Operação Boca Livre, que investiga desvio de recursos federais em projetos culturais aprovados no Ministério da Cultura com isenção fiscal pela Lei Rouanet.

Policiais federais e servidores do Ministério da Transparência cumpriram 14 mandados de prisão temporária e 37 mandados de busca e apreensão em São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal.

Entre os alvos da busca está o Grupo Bellini Cultural, que atua há 20 anos no mercado e é, conforme a investigação, o principal operador do esquema. O donos da empresa, Antonio Carlos Bellini Amorim e sua mulher, Tânia Regina Guertas, são descritos pelos investigadores como líderes da organização criminosa.

Operação Boca Livre - Cerca de 124 policiais federais participam da operação. Veja número de mandados

Os filhos Bruno Amorim e Felipe Amorim e a irmã de Bellini Zuleica Amorim também são acusados de pertencer à quadrilha. Felipe teve seu casamento pago com recursos desviados da Lei Rouanet. A festa de luxo aconteceu na praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis. Segundo a PF, o grupo fraudava a Rouanet desde 2001.

O relatório da PF aponta que Bellini, "por meio de diversas pessoas físicas e jurídicas a seu serviço", conseguia aprovar projetos culturais com renúncia fiscal junto ao Ministério da Cultura e à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo -o texto, entretanto, não detalha como se dava o esquema no órgão estadual.

Reprodução/Instagram
Decoração do casamento investigado pela Polícia Federal, em Jurerê Internacional
Decoração do casamento investigado pela Polícia Federal, na praia Jurerê Internacional

Em âmbito federal, a PF estima que foram desviados R$ 180 milhões em dinheiro público, por meio de notas frias, superfaturamento, sonegação de impostos e contratação de serviços e produtos fictícios, entre outras fraudes.

O relatório dos investigadores é rico na descrição de exemplos em que houve desvio de finalidade dos projetos. Num deles, a justificativa para a renúncia fiscal era que livros fossem distribuídos à população carente e em escolas públicas, mas viraram publicações para distribuição a clientes de empresas e biografia do empresário contratante.

A empresa Roldão, do ramo atacadista, teve um projeto aprovado para realizar quatro concertos de música instrumental no interior de SP para população de baixa renda. Em vez disso fez dois eventos no Tom Brasil com a orquestra Villa Lobos e com a banda de rock Jota Quest, exclusivo para convidados da empresa.

A Cristália Produtos Químicos também contratou o Jota Quest para um projeto beneficiado pela Lei Rouanet, em vez de realizar um circuito musical para a popularização da música instrumental. O escritório de advocacia Demarest, um dos mais tradicionais do país, também usou a lei para fazer um projeto denominado Celebração Musical, mas em vez disso contratou o humorista Fabio Porchat para um show privado em comemoração dos 68 anos do escritório.

Um dos presos na operação desta terça é o diretor de Relações Institucionais do Laboratório Cristália, Odilon Costa Filho. Interceptações telefônicas mostram que Costa recebia uma porcentagem dos eventos que a Cristália fazia via a empresa de Bellini.

O esquema, diz a PF, atuava ao menos desde 2001, no governo Fernando Henrique Cardoso -o ministro da Cultura era Francisco Weffort. Desde então, a pasta teve outros cinco titulares, em três diferentes gestões: Gilberto Gil (Lula), Juca Ferreira (Lula e Dilma), Ana de Hollanda (Dilma), Marta Suplicy (Dilma) e Marcelo Calero (Temer).

O inquérito foi instaurado em 2014, depois que a PF recebeu documentação da então CGU (Controladoria-Geral da União) relacionada a desvios de recursos da Rouanet.

A operação atinge um dos problemas da Rouanet, a dificuldade de fiscalização. Como revelou a Folha, no atual ritmo, o MinC levaria quase 19 anos para analisar prestações de contas de projetos aprovados na Rouanet só nos 20 primeiros anos da lei.

Segundo o delegado regional de combate ao crime organizado, Rodrigo de Campos Costa, esses casos aconteceram porque "houve no mínimo uma falha de fiscalização" por parte do ministério. O ministro da Cultura, Marcelo Calero, rebateu. "Em muitos dos casos apurados na operação Boca Livre, a governança da Rouanet atuou e foi eficaz."

NOVOS PARÂMETROS

Calero disse que deve publicar em breve uma portaria conjunta com o Ministério da Justiça para definir novos parâmetros de monitoramento dos projetos da Rouanet. "Precisamos aprimorar a fiscalização da lei, e não demonizá-la por conta de bandidos que se uniram numa quadrilha e se valeram desse instrumento para finalidades não previstas pela própria Rouanet."

A ideia é incluir na reformulação da lei pontos do ProCultura, projeto que tramita no Senado e propõe novo marco regulatório para o setor.

Para diminuir o papel do mecenato nos investimentos culturais, o MinC planeja aumentar o protagonismo do FNC (Fundo Nacional de Cultura) e fortalecer o Ficart (Fundo de Investimento Cultural e Artístico), que incluiria a possibilidade de dedução do IR de pessoas físicas e jurídicas que adquirirem cotas da iniciativa federal.

A pasta estuda a possibilidade de criar fundos setoriais vinculados ao FNC para financiamento segmentado de áreas como música, artes visuais e literatura.

OUTRO LADO

A reportagem tentou falar com a família de Antonio Carlos Bellini em sua residência, em um condomínio de apartamentos de alto padrão, no Morumbi, zona oeste de São Paulo. Foi recebida por um dos filhos do casal, adolescente, e pela diarista.

Eles afirmaram que o empresário saiu de casa pela manhã em direção à sede da Polícia Federal, na Lapa, e não voltou. Os advogados de Belllini, Eduardo Zynger e Maria Elizabeth Queijo, passaram o dia na Superintendência da Polícia Federal e não retornaram os pedidos de entrevista da reportagem.

O advogado de Odilon Costa Filho, José Luís Oliveira Lima, também não quis se manifestar sobre a investigação e a prisão de seu cliente, que está na carceragem Polícia Federal, em São Paulo.

A assessoria de imprensa das Lojas Cem disse que a Polícia Federal esteve na empresa "solicitando documentos e informações sobre empresas que lhe prestaram serviços no âmbito da Lei Rouanet". Segundo a nota, a empresa colaborou com a busca e apreensão.

A nota acrescenta ainda que "os projetos culturais nos quais investimos foram feitos, de nossa parte, dentro da mais absoluta regularidade" e que a postura das Lojas Cem "com todas as pessoas e instituições com as quais se relaciona é de total transparência e completa lisura".

O Grupo NotreDame Intermédica, que também foi alvo da busca e apreensão nesta terça-feira, diz que os policiais federais foram até a sede da empresa para a "coleta de documentos e informações relacionados a empresas terceiras de marketing de eventos (alvos da investigação) que prestaram serviços ao Grupo NotreDame Intermédica no âmbito da Lei Rouanet".

Segundo a nota, "o Grupo NotreDame Intermédica informa que não é objeto de investigação na denominada Operação Boca Livre conduzida pela Polícia Federal e enfatiza que não cometeu qualquer irregularidade". A nota da assessoria de imprensa diz ainda que o grupo colaborou e continuará colaborando com a investigação.

A KPMG no Brasil diz, em nota, que não é objeto de investigação na Operação Boca Livre e "o fato da PF comparecer ao nosso escritório se deu pelo cumprimento de diligência para coletar documentos referentes a contratos com empresas alvos da investigação e que prestaram serviços para a KPMG no apoio a projetos culturais".

A Roldão Atacadista afirmou em nota que "contratou a Bellini Eventos Culturais para a realização de dois projetos culturais e que, na manhã de terça (28), foi requerida pela Polícia Federal, no âmbito da Operação Boca Livre, a apresentar a documentação referente a esses serviços. A empresa informa que não é alvo da operação e que já entregou à força-tarefa todos os documentos solicitados. Por fim, reforça que está colaborando com a investigação, à disposição de todas as autoridades para prestar quaisquer esclarecimentos e que não admite qualquer tipo de irregularidade ou ilegalidade em suas atuações".

As empresas Cecil, Nycomedes Produtos Farmacêuticos e Laboratório Cristália, que também foram alvos de busca e apreensão na terça-feira, não atenderam os pedidos de entrevista da reportagem.

LABORATÓRIO DE COMBATE À CORRUPÇÃO

A operação Boca Livre foi a primeira realizada com o Laboratório de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro de São Paulo - LAB-LD, que fez o cruzamento e a análise de dados e informações.

As ferramentas do laboratório permitiram a coleta de dados de pessoas e empresas investigadas e a identificação dos relacionamentos entre elas, apontando os indícios de crimes.

O LAB-LD será utilizado também na análise do material apreendido pela Polícia Federal.

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ENTENDA A LEI ROUANET

O que é a Lei Rouanet?

Sancionada pelo presidente Fernando Collor em 23 de dezembro de 1991, a lei 8.313 instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, que implementou mecanismos de captação de recursos para o setor cultural. Um deles é o incentivo à cultura, ou mecenato (que popularmente ficou conhecido como Lei Rouanet).

Como funciona o incentivo cultural?

O governo federal permite que empresas e pessoas físicas descontem do Imposto de Renda valores diretamente repassados a iniciativas culturais, como produção de livros, preservação de patrimônios históricos, festivais de música, peças de teatro, espetáculos de circo, programas audiovisuais etc. Ou seja, em vez de pagar o imposto da totalidade, você reverte parte dele a um projeto cultural.

Quanto as empresas e pessoas físicas podem destinar a projetos aprovados na Rouanet? E quanto podem deduzir do Imposto de Renda?

Os incentivadores podem ter até o total do valor desembolsado deduzido do imposto devido. Mas há limite: empresas com lucro real podem abater até 4% do imposto devido; pessoas físicas, até 6%.

Assim, uma companhia que deve pagar R$ 1 milhão de Imposto de Renda pode redirecionar a um projeto aprovado na Lei Rouanet até o valor de R$ 40 mil. Já uma pessoa que paga, digamos, R$ 10 mil de imposto pode deduzir até R$ 600.

Valores da Rouanet 2015 - Em milhões

Quem mais capta verba pela lei?

É comum ler por aí —sobretudo nas redes sociais— que "esse artista mama na Rouanet" ou "aquele artista é sustentado pela Rouanet". Mas, segundo informações do MinC, os grandes captadores em 2015 foram produtoras e entidades como museus. Veja:

Incentivo - Quem mais recebeu verba via Lei Rouanet em 2015

Projetos - Os maiores projetos de 2015, por captação

Quanto de imposto deixa de se arrecadar com a Lei Rouanet?

De acordo com projeção da Receita Federal para 2016, a renúncia fiscal correspondente à lei de incentivo à cultura —ou seja, o que deixará de ser arrecadado em impostos para financiamento de projetos culturais— será de aproximadamente R$ 1,3 bilhão. O valor representa 0,48% dos cerca de R$ 270 bilhões que o Brasil deixará de arrecadar em impostos com todos os programas de incentivo.

Somada a outras leis de incentivo (como a Lei do Audiovisual), a renúncia fiscal correspondente a programas do MinC será de R$ 1,8 bilhão —0,66% do total de programas da União.

Renúncia fiscal em 2016, por função orçamentária - Em bilhões


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