Folha de S. Paulo


Jornalista narra ascensão e queda de Nem, o 'dono do morro' da Rocinha

Guto Maia - 10.nov.2011/News Free
RIO DE JANEIR.10 DE NOVEMBRO DE 2011- Ant¾¥nio Bonfim Lopes, conhecido como NEM da Rocinha, foi transferido da Pol¾-cia Federal no centro do RJ, para o pres¾-dio Bangu 1. Foto: Guto Maia / News Free *** PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS ***
Antônio Bonfim Lopes, o Nem, é transferido para o presídio de Bangu

Em junho de 2000, o entregador de revistas Antônio Francisco Bonfim Lopes, 24, subiu a ladeira da favela da Rocinha, zona sul do Rio, para pedir um empréstimo ao dono do morro, o traficante Lulu. Precisava pagar o tratamento da filha bebê, Eduarda, que desenvolvera uma doença rara, histiocitose X.

Desceu de lá com o apelido Nem, e acabou virando o dono do morro, "o mestre", tema de funks e conhecido por andar com seu macaco de estimação, Chico-Bala.

Hoje, aos 40 anos, está detido em um presídio de segurança máxima no Mato Grosso do Sul, condenado a 16 anos e 18 meses por associação ao tráfico de drogas.

A história de sua ascensão e queda é narrada em "O Dono do Morro", do jornalista britânico Misha Glenny, que lançará o livro na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que começa nesta quarta (29).

Pako Mera/Alamy Live News/Latinstock
F1AGXD Edinburgh. UK. 31st August. Edinburgh International Book Festival. Day 17 Edinburgh International Book Festival takes place in Charlotte Square Gardens. Pictured Misha Glenny. Foto:Pako Mera/Alamy Live News/Latinstock ORG XMIT: F1AGXD ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O jornalista britânico Misha Glenny, que investiga a máfia e o narcotráfico

Autor também de "McMáfia" (2008), que trata do crime organizado e que o trouxe à Flip daquele ano, e "Mercado Sombrio" (2011), a respeito de cibercrime –todos da Companha das Letras–, Glenny aprendeu algum português e morou na Rocinha para apurar o livro. Ele conta a história não só de Nem, mas da favela de 100 mil pessoas e do tráfico na cidade.

Pega principalmente dos anos 1980 à instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), essencial para a narrativa sobre o traficante.

NO PORTA-MALAS

O noticiário não mostrava outra coisa na manhã de 10 de novembro de 2011. Lá estava Nem, o traficante mais procurado do Estado, encontrado em posição fetal no porta-malas de um sedã. Para evitar que a polícia o abrisse, o motorista havia dito ser cônsul honorário do Congo.

A imagem de assassino impiedoso, pensou o jornalista, não batia com a que Nem passara em suas poucas entrevistas. Nem com a que um morador da Rocinha transmitira, quatro anos antes, quando Glenny, turista no Rio, visitara a favela.

Foi ter com o próprio Nem. O traficante rejeitara diversos pedidos de entrevista desde que fora preso, mas topou o de Glenny."Ainda não entendo por que decidiu falar comigo. Mas sei que uma vez que pessoas assim tomam a decisão de falar, falam muito".

Falou por dois anos, em dez entrevistas, num total de 28 horas. A primeira conversa foi no inverno de 2012.

Talvez Nem tenha sentido o olhar simpático do entrevistador. No livro, ele é descrito como um traficante-ditador benevolente com um tino para os negócios. Sob seu reinado, homicídios caíram, não se via mais tantas armas na rua e a Rocinha passou a atender a cerca de 60% de todo o consumo de cocaína do Rio.

Virou lugar "cool", que o pessoal "do asfalto" achava bacana frequentar, onde o rapper americano Ja Rule fez show em 2008. Nem bancava enterros, remédios e o que mais os moradores precisassem.

"Quanto menos gente morre, mais bem-sucedido é o negócio e mais felizes as pessoas ficam. Ele sabia disso", diz Glenny. "Mas tinha o monopólio da violência. Tirava as armas da rua, mas botava de volta se sentisse ameaçado."

"Não era uma democracia", diz Nem a Glenny, "mas ao mesmo tempo não era uma ditadura, porque eu sempre explicava meu raciocínio aos moradores comuns."

Em pelo menos um aspecto de sua vida Nem se mostra muito violento: com suas várias mulheres. Uma delas conta que pediu a um vizinho que a ajudasse a fugir, com medo de ser morta pelo traficante.

Glenny quase justifica o ato: "Havia, de maneira tortuosa, um princípio por trás disso. Se surgisse a mais leve sugestão de que a namorada de um bandido estivesse envolvida com outro, isso traria uma mancha inadmissível para sua honra", diz o livro.

"O que eu fiz foi mostrar que a cultura é essa. É uma questão de controle, especialmente se você é dono do morro."

O Dono Do Morro
Misha Glenny
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Glenny diz no livro que boatos atribuem uma série de mortes a Nem, mas não há provas. Foi formalmente acusado pelo envolvimento no assassinato de duas jovens, crime que será julgado pelo júri. Nem nega, e Glenny acredita.

"Se ele esteve envolvido em algum assassinato –e é difícil acreditar que ele não tenha alguma responsabilidade– não foi nesses."

Como Glenny diz, é improvável que Nem tenha subido na hierarquia do tráfico sem cometer um crime contra a vida. O leitor sentirá falta de mais informações sobre os boatos de homicídio. Quantos foram? Não sabemos.

REFLEXÃO NA CADEIA

O título em inglês, "Nemesis" (inimigo implacável), alude ao que Glenny vê como a nêmese de Nem: a política da UPP, quando começou sua queda. "Quando as outras favelas foram tomadas pela UPP, muitos traficantes fugiram para a Rocinha. E ele não tinha tanto controle sobre eles."

O jornalista conta que, na cadeia, Nem tem refletido sobre a vida e diz que, quando for solto, não voltará a traficar.

"Ele não demonstrava, mas sei que esteve deprimido com a situação na Rocinha, a própria situação legal, problemas de família. Ele sempre pondera as implicações práticas e morais do que faz. Não toma sempre as decisões certas, mas reflete sobre elas."

*

EM SÃO PAULO - O jornalista Misha Glenny vai dar uma palestra no auditório da Folha na segunda (4), às 11h. Autor de "O Dono do Morro", Glenny trabalhou no "Guardian" e na BBC. O evento é gratuito e aberto ao público. Clique para se inscrever.


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