Folha de S. Paulo


Em ruínas, parque de Oscar Niemeyer no Líbano é cenário de filme sci-fi

Nenhuma babá, criança, jardineiro ou skatista ali ainda se espanta com os buracos de bala ao longo das paredes, nem com os vergalhões retorcidos que pendem do teto de um dos prédios, como nervos que se movem numa fratura exposta. Do outro lado do mundo, uma espécie de Ibirapuera encontrou sua ruína antes mesmo de ser inaugurado.

Oscar Niemeyer, morto aos 104, há quatro anos, construiu entre os anos 1960 e 1970 na cidade de Trípoli, no norte do Líbano, um conjunto arquitetônico que lembra o parque paulistano, além de outras estruturas que ecoam os contornos de Brasília, como as arcadas do Itamaraty.

Mas a guerra que explodiu ali em 1975 abortou o sonho de modernidade e acabou condenando os espaços fantásticos do arquiteto ao esquecimento –em vez de centro de convenções ou espaço para o que seria uma feira internacional, esse Ibirapuera libanês chegou a funcionar como uma base militar ao longo do conflito.

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Bienal de Sao Paulo - Alia Farid. Foto: Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Cena do filme da artista plástica kuwaitiana Alia Farid

Em raros tempos de paz, virou um cenário para caminhadas, pista de skate e até arena para shows de rock. É essa vida entre ruínas modernas que inspirou um filme da artista kuwaitiana Alia Farid.

Ela passou meses no Líbano rodando uma espécie de ficção científica entre as curvas de Niemeyer no deserto. Quando estrear na próxima Bienal de São Paulo, em setembro, sua obra será uma espécie de espelho distorcido do Ibirapuera de verdade, onde acontece a mostra.

"Minha ideia é confundir os dois lugares", diz Farid. "Há muitos elementos repetidos nos dois, além do fato de serem parques urbanos com inclinações culturais e lembrarem momentos dos nossos países em que se buscou uma certa modernidade."

Esse "irmão árabe" do parque paulistano, nas palavras do curador da Bienal, Jochen Volz, também tem um pavilhão que serpenteia entre jardins, como a marquise do Ibirapuera, além de uma grande cúpula redonda, que lembra a Oca e serviu de caserna durante a guerra civil.

Há ainda um pórtico e estruturas mais esculturais que remetem ao Memorial da América Latina, outra obra de Niemeyer em São Paulo. É como se no Oriente Médio o arquiteto se sentisse à vontade para experimentar os elementos de seu vocabulário.

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Bienal de Sao Paulo - Alia Farid. Foto: Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Vista da obra de Niemeyer no parque que projetou em Trípoli, no Líbano

"Nenhuma de suas estruturas é fechada ou isolada do entorno, e é isso que eu acho interessante na obra dele, que é sempre espetacular e sensual", diz Farid. "Não penso nele como um futurista. Ele é um vanguardista mais interessado no progresso que parte de um equilíbrio e da harmonia com esse terreno."

AVESSO DA UTOPIA

No fundo, a artista retrata o avesso da utopia. Quando Niemeyer foi escalado pelo governo libanês para construir o parque de exposições, ele havia acabado de terminar as obras de Brasília. Sua arquitetura modernista, de formas curvilíneas e agarradas à natureza, seria uma chave potente para o futuro.

Mas essa ideia, tanto no Brasil quanto no Líbano, acabou se revelando um tanto frágil. Enquanto o golpe militar de 1964 levou ao exílio do arquiteto, a guerra civil no país árabe sepultou toda e qualquer promessa de vanguarda.

Niemeyer, no caso, é aqui um elo entre vontades distantes mas não distintas de um futuro calcado na ordem geométrica e no progresso mais que perfeito –e por isso mesmo um tanto impossível– vislumbrado pelo modernismo.

"É chocante ver a obra de um arquiteto como esses nesse estado de devastação", diz Farid. "Mesmo assim, essa não é uma ruína total. A arquitetura se deteriorou com o tempo, mas existe uma vida que se mantém ali. Os jardins vêm sendo cuidados, e as pessoas não deixam de visitar esse lugar. Ele faz parte da vida."

Tanto que seu filme contrapõe a presença fantasmagórica de uma bela mulher solitária, dando corpo à ideia de arquitetura, a pessoas que passeiam pelo parque, de jardineiros podando arbustos entre prédios arruinados a velhinhos em suas caminhadas.

Nesse sentido, a paralisia estranha dessas formas, como uma arquitetura congelada no tempo e flutuando sobre espelhos d'água sempre estorricados, parece desafiada pelo movimento de uma população já indiferente aos vestígios de brutalidade que se acumulam ali –das cadeiras empilhadas e em estado de putrefação nas salas vazias do centro de convenções às marcas dos fuzilamentos.

Mais impressionante dos espaços do filme, um anfiteatro com uma arquibancada de cadeiras brancas parece inverter o jogo na obra de Farid. Em vez de acomodar o público de algo a ser contemplado, elas mesmas viram objeto plástico, um elemento perturbador que está no centro de um espetáculo da destruição –são as sentinelas do que poderia ter sido e não foi.


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