Folha de S. Paulo


Olimpíada terá disputa acirrada entre esportes e novelas na TV brasileira

Quando começar a Olimpíada do Rio de Janeiro, na primeira semana de agosto, os olhos do mundo estarão voltados ao Brasil. Os olhos do Brasil, enquanto isso, estarão voltados a Camila Pitanga.

Veterana das novelas brasileiras, Pitanga costuma ser escalada para papéis de donzela frágil que faz péssimas escolhas quanto a homens. Ao longo das décadas, ela viveu paixões por um bandido, um executivo manipulador e uma série de playboys insossos. No momento, ela está se apaixonando pelo inimigo jurado de seu pai em "Velho Chico" (Globo).

Nos dias de semana à noite, a Globo transmite cinco novelas de uma hora de duração, uma maratona de cobiça, paixão e trocas de olhares significativos, interrompida por apenas dois telejornais e um seriado de humor.

O horário mais cobiçado é o das 21h15, quando até 50 milhões de pessoas acompanham a novela, ou cerca de um quarto da população do país. Para fins de comparação, a cerimônia do Oscar deste ano atraiu 34 milhões de telespectadores nos Estados Unidos, pouco mais de 10% dos norte-americanos. Mas é claro que o Oscar é um evento anual. A maioria das novelas é transmitida diariamente de segunda a sábado, e sua duração média é de 200 capítulos.

Essas novelas e a Globo formam a trilha sonora do país, o ruído por trás da conversa nas salas das casas e nos restaurantes, bem como em incontáveis táxis com telas instaladas nos painéis, o que acrescenta um elemento de potencial surpresa aos percursos motorizados de todos. Para o Grupo Globo, um gigante multimídia descrito como "a mais poderosa companhia brasileira" pela revista "Economist", a Rede Globo é um propulsor de crescimento sem par.

Mas para os organizadores da Olimpíada, as novelas são um problema. No ano passado, antes que o vírus zika ganhasse manchetes internacionais e antes que as rodas do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff (PT) começassem a girar, os representantes do Comitê Olímpico Internacional (COI) no Brasil admitiam prontamente uma preocupação: a de que mais brasileiros optassem por assistir às novelas do que aos Jogos Olímpicos.

De fato, essa disputa olímpica específica será surpreendentemente acirrada. E por mais estranho que possa parecer, as novelas talvez vençam.

Embora a Globo seja apenas uma entre diversas redes de TV brasileiras com direitos de transmissão sobre os jogos, as concorrentes têm apenas uma fração de sua audiência. E ainda que a empresa deva transmitir provas durante todo o dia e parte da noite, no horário nobre ela essencialmente não transmitirá esportes.

Sim, a cerimônia de abertura será transmitida ao vivo. Mas não transmitir novelas entre as 18h30min e as 22h30min? De jeito nenhum, disse Monica Albuquerque, a diretora de desenvolvimento artístico da Globo. Haverá pausas para transmitir destaques e resultados, mas a grade não mudará apenas porque o maior espetáculo esportivo do planeta está visitando o país.

"O país pararia", ela disse, se as novelas fossem suspensas. "É cultural. É parte da vida. Não consigo imaginar o Brasil sem novelas".

UM CASO DE AMOR NACIONAL

A Globo está simplesmente seguindo as preferências de sua audiência. A menos que o assunto seja futebol ou, em dimensão muito menor, vôlei de praia, os brasileiros não são muito apaixonados pelos esportes olímpicos. Mas adoram as novelas, e qualquer pessoa que deseje compreender o país, e suas atuais dificuldades, deveria observar o tórrido caso de amor entre os brasileiros e sua singular variedade de telenovelas.

"O que o Brasil fez com esse formato é muito especial e muito particular, diferentemente do que se vê no restante da América Latina", disse Maria Immacolata Vassallo de Lopes, do Centro de Estudo de Telenovelas da Universidade de São Paulo. "Elas introduziram o realismo. Integram as vidas cotidianas das pessoas de uma maneira quase jornalística. Continuam a ser melodramas, mas feitos de maneiras realista".

As novelas brasileiras variam de ligeiramente cômicas a familiares (no começo da noite) a épicas e sensuais (mais tarde). Esteticamente, têm mais em comum como velhos dramas televisivos norte-americanos como "Dallas" ou "Knots Landing" e novelas diurnas como "General Hospital". As tramas são extensas e diversificadas, os elencos são enormes e, antes que a moeda do país começasse a perder valor, alguns anos atrás, o custo de cada capítulo podia atingir até US$ 400 mil.

Em um ano típico, a Globo produz cerca de 2,5 mil horas de entretenimento, o equivalente a mais de mil filmes de longa-metragem. Os programas estão entre os produtos de exportação mais bem-sucedidos do Brasil, e são assistidos em mais de 100 países, entre os quais China, Austrália e Sérvia

ESPELHANDO MOMENTOS CONTURBADOS

Na superfície, as novelas do país parecem puro escapismo, de um tipo que poderia parecer especialmente atraente agora que o país vive um momento de infortúnio, com queda no PIB (Produto Interno Bruto) e as reputações de dezenas de políticos destruídas. Um esquema de propinas na gigante estatal do petróleo, a Petrobras, já levou à prisão dezenas de líderes partidários e executivos importantes.

O fiasco não se relaciona aos problemas de Dilma, ligados a acusações de manobras orçamentárias ilegais, que supostamente a teriam ajudado a conquistar a reeleição, por margem estreita de votos, em 2014. A queda nos preços do petróleo, uma das commodities mais lucrativas do país, agravou a sensação de crise. No passado, parte da lista de países mais promissores no cômputo de quase todos os economistas, o Brasil agora está em recessão. O otimismo que definia o país ao conquistar o direito de organizar a Olimpíada de 2016, sete anos atrás, desapareceu.

Em resumo, o país tem muito com que se preocupar, mas as novelas não são maneira de esquecer os problemas. Na verdade, eles em muitos casos estão incorporados aos seus roteiros.

A corrupção e a desigualdade de renda são temas comuns, como o racismo, a violência doméstica, o HIV e a burocracia. O mais comum é que as novelas operem como uma espécie de análogo aos acontecimentos correntes.

Por exemplo, "Velho Chico" —o título é uma referência ao rio São Francisco, que serve de cenário à novela— pode parecer uma úmida saga de luxúria, lágrimas e barbas desgrenhadas. Mas também é uma história cautelar sobre o meio ambiente, bem como uma crítica da política contemporânea. Boa parte da ação gira em torno de uma figura com jeito de chefão mafioso chamada coronel Saruê, que toma terras e explora trabalhadores rurais.

Há novelas puramente fantasiosas no Brasil, como "O Mapa da Mina", na qual a heroína tem um mapa do tesouro tatuado perto das nádegas. Mas elas são superadas em número por histórias com temas mais pesados. Em "O Rei do Gado", grande sucesso de audiência em 1997, o personagem principal era um senador lutando por justiça. A novela era tão apreciada que senadores de verdade lutavam para fazer participações na trama.

Mais recentemente, o líder mais popular do país talvez tenha sido Moisés, astro de uma versão novela de "Os Dez Mandamentos. A novela foi transmitida pela Record, uma das rivais da Globo, que conseguiu liderar horário em audiência durante alguns dias —realização tão rara que virou notícia.

Parte do atrativo estava nos efeitos especiais requeridos para apresentar a combinação de milagres e calamidades da trama. Mas para além do espetáculo, o diretor, Alexandre Avancini, acredita que o motivo do sucesso da produção foi ela ter chegado em um momento muito oportuno.

"Infelizmente, vivemos em uma era de grande corrupção no Brasil", ele disse. "Moisés não é corruptível. Ele luta contra um grande poder a fim de mudar a situação. Os brasileiros viam alguma esperança em sua história".

A Record é uma empresa de capital fechado e não divulga detalhes financeiros. Mas Avancini disse que durante a exibição da novela, a audiência cresceu o suficiente para que a rede acrescentasse um terceiro intervalo comercial e começasse a exibir seis comerciais por intervalo, em lugar de quatro. Em janeiro, ao final dos 175 capítulos programados, a Record ainda não havia desistido de explorar o fenômeno, e estava preparando o lançamento de um filme sobre os "Os Dez Mandamentos" no cinema.

NOVELAS SALVADORAS

Como a Globo, a Record vai exibir novelas em seu horário nobre durante a Olimpíada, entre elas uma continuação de "Os Dez Mandamentos". As duas redes, e uma terceira rival chamada Bandeirantes, teriam gasto US$ 190 milhões em 2009 para adquirir os direitos de transmissão da Olimpíada de Inverno de Sochi e da Olimpíada do Rio, junto ao COI. Os jogos, que são bancados por capital privado, fecham acordos como esses no mundo inteiro, e eles respondem por cerca de metade da receita do COI. Patrocínios cobrem a maior parte da metade restante.

João Pedro Paes Leme, diretor de esportes da Globo, disse que a rede tem obrigação contratual de transmitir nove horas de jogos a cada dia, e seu canal aberto transmitirá 10 ou mais horas diárias de esportes diariamente. A companhia excederá em muito o total contratual, ele disse, quando seus canais esportivos na TV a cabo se tornarem veículos exclusivos para transmissões olímpicas. Mas a Globo só tem 20 milhões de assinantes como TV a cabo. É um nicho de mercado.

Perguntei a Paes Leme: "O senhor é um homem de esportes. Não seria possível negociar mais tempo de transmissão para esportes no canal aberto da Globo, com sua enorme audiência?"

"Mais que um homem de esportes, sou um homem de TV", ele disse. "Compreendo perfeitamente a importância das novelas".

A consciência social que define as novelas brasileiras começou, paradoxalmente, com a ditadura militar que dominou o país entre 1964 e 1985. O governo perseguia atores, escritores e diretores esquerdistas de teatro e cinema, e proibia produções que via como antagônicas ao regime. Por não terem outro lugar em que trabalhar, esses artistas se voltaram à Globo, um porto seguro porque a empresa tinha um relacionamento confortável com o governo.

A Rede Globo surgiu um ano depois que a ditadura tomou o poder, e com isso nasceu um casamento de conveniência. Os militares precisavam de um parceiro maleável na mídia eletrônica, porque queriam difundir sua visão de capitalismo de consumo e derrotar a ameaça do comunismo. O governo chegou a vender televisores a crédito aos cidadãos, por intermédio do Ministério das Comunicações.

Em 2013, a Rede Globo pediu desculpas por seu apoio ao governo militar, definindo-o como "um erro". Nem todo mundo perdoou. Naquele ano, durante protestos contra o governo, um escritório da Globo no Rio foi atacado e incendiado. Na atual crise política, houve quem criticasse severamente a Globo por se alinhar à elite de direita. Mas os fãs sempre superaram em muito os detratores, especialmente nas áreas rurais, onde as pessoas tiveram seu primeiro vislumbre de um Brasil próspero e vibrante por meio das novelas da Globo.

A geração milênio é um pouco menos apegada a elas, um dos motivos para que os índices de audiência da rede tenham caído um pouco ao longo dos anos. Mas a banda larga e a TV a cabo vêm demorando a crescer, e por isso potenciais rivais, como a Netflix, ainda não realizaram grandes avanços. No ano passado, a "Carta Capital", uma revista esquerdista sediada no Rio, estimou que espantosos 60% do investimento publicitários são destinados aos canais de TV da Globo.

Hoje, a empresa é dirigida por três filhos do fundador Roberto Marinho, cada um dos quais com fortuna estimada em mais de US$ 5 bilhões pela revista "Forbes". (Roberto Marinho morreu em 2003). Eles comandam oito empresas com 19 mil funcionários. Para manter a audiência das novelas —e derrotar ameaças como "Os Dez Mandamentos"— eles estão investindo na Globo Studios.

Tradução PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: