Folha de S. Paulo


crítica

Brasileiro 'A Despedida' faz retrato sensível da velhice

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Fenômeno em ascensão, a velhice ainda não é tema frequente no cinema. Entre nós essa situação não é diferente, razão pela qual "Chuvas de Verão", realizado em 1977 por Cacá Diegues, continua referência no assunto. Isso quase basta para dar ares de acontecimento ao drama "A Despedida", dirigido com sensibilidade por Marcelo Galvão.

A história é inspirada na vida de Renato Oliveira Galvão, avô do diretor, almirante aposentado de 92 anos obrigado a lidar com inúmeras manifestações de decrepitude física. Interpretado no tom justo por Nelson Xavier, o Almirante se desloca com o auxílio de um andador, comemora quando acorda com a fralda seca, treme constantemente.

A primorosa sequência inicial, que dura cerca de 17 minutos, mostra-o realizando tarefas cotidianas: levantar-se da cama, ir ao banheiro, fazer a barba, tomar banho, vestir-se. Tudo com compassada morosidade, que reafirma a dificuldade dos atos. Essa lentidão instala uma sensação de angústia no espectador, assim como o som abafado, que só se normaliza quando o Almirante coloca seu aparelho de surdez.

A reação dos familiares –a mulher, o filho e a nora– ao vê-lo pronto para tomar o café da manhã é de surpresa. Normalmente ele é ajudado a sair da cama, a fazer sua higiene e a se vestir. Mas naquela manhã, o Almirante rompe ainda mais com a rotina anunciando que tomará café na rua.

Divulgação
Nelson Xavier e Juliana Paes em cena de 'A Despedida
Nelson Xavier e Juliana Paes em cena de 'A Despedida'

É o início de uma jornada especial para ele. Caminha até um bar, onde não aparecia há tempos, para saldar uma dívida. Irrisória, mas que ele faz questão de pagar. Depois, vai à casa de um velho amigo para pedir perdão por uma desavença de muitos anos.

Tudo indica que o personagem sente que o fim está próximo –embora negue isso mais de uma vez– e deseja ajustar contas. O ponto alto é o reencontro com a amante, pelo menos cinco décadas mais nova, que chama apenas de Morena (Juliana Paes).

O Almirante chega à casa dela sem avisar e –bem devagar– faz café, cuida do passarinho. Assim como a casa dele, a de Morena também tem um aspecto antigo na decoração, referência ao tempo que passou, e é bastante escura. Essa penumbra que envolve os espaços internos contrasta com as cenas de rua –sempre cheias de luz e movimento, que remetem à vida– e dão um peso ainda mais melancólico à velhice.

Outro dado –mais óbvio– que reitera a passagem do tempo são os relógios, todos antigos e onipresentes ao longo da narrativa. Não por acaso, a primeira imagem do filme é a de um despertador.

O Almirante conserva a mente intacta, como demonstram suas tiradas espirituosas com os rappers da praça e com o taxista. Mas é com Morena que ele lança sua mais cortante reflexão sobre a velhice: "Não queria ter a lucidez de entender a minha realidade". O que mais dói é a consciência da decadência. Assim, sem pieguismo, Galvão sintetiza a condição humana na velhice.

A DESPEDIDA
DIREÇÃO: Marcelo Galvão
ELENCO: Nelson Xavier, Juliana Paes, Deto Montenegro, Amélia Bittencourt
PRODUÇÃO: Brasil, 2014, 14 anos
QUANDO: em cartaz


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