Folha de S. Paulo


crítica

Autora leva fluência à crítica de arte em '41 Inícios Falsos'

Uma história que não está neste livro resume Janet Malcolm, seu mundo, seu modus operandi. Em meados dos anos 1980, ela preparava um extensa reportagem para a semanal "New Yorker" sobre a editora-chefe da revista "Artforum", Ingrid Sischy.

Nas jovens mãos de Sischy, então aos 27, a "Artforum" tinha ganhado iconoclastia e "cojones". Chacoalhava a roseira ressecada das galerias e salões nova-iorquinos.

Regra na obra de Malcolm, a reportagem levaria meses, resultando em um texto longuíssimo. Em um trabalho tão completo, era preciso ouvir artistas –dezenas. E críticos da revista, muitos. E ex-críticos da revista, todos.

Um desses últimos era Thomas Lawson. O normal seria Janet Malcolm ir até a casa do entrevistado. Mas, pecado mortal, Lawson morava no Brooklyn. A perspectiva de cruzar a ponte, saindo de Manhattan, era demais para ela.

Malcolm pediu que Lawson viesse até a casa dela. Assim foi feito. E ele acabou se dando bem. Ao site "The Daily Beast", em 2013, recordou:

Nina Subin/Divulgação
A escritora Janet Malcolm, autora de '41 Inícios Falsos
A escritora Janet Malcolm, autora de '41 Inícios Falsos'

"Sentamos numa cozinha muito bem equipada, que dava para um jardim tranquilo. No texto, Janet voltou seu olhar perfurante só para a minha pessoa, 'sans' contexto, enquanto os outros entrevistados ganharam descrições cruelmente precisas de suas abjetas condições de moradia."

Assim opera Janet Malcolm: seu mundo é Manhattan. Escreve sobre a elite da elite do mundo artístico-intelectual desse pedaço de Nova York. Para cima dessa gente –sobre a qual reporta, e da qual é parte–, lança seu poder de observação penetrante, municiado pela psicanálise e pela filosofia da Escola de Frankfurt.

Janet Malcolm, 82, não alivia, está se lixando se o leitor não conhece as referências –principalmente literárias– que ela despeja a cada parágrafo. Para ela, tempo e espaço são conceitos infinitos. Apura muito e escreve muito. Dirige-se a seus iguais. E pouca gente é igual e ela.

O livro "41 Inícios Falsos" é uma coletânea de ensaios, reportagens e ensaios-reportagens publicados na "New York Review of Books", no "New York Times" e na "New Yorker". Sobre artes plásticas, fotografia e literatura.

O que abre o volume –e a ele dá nome– é uma impressionante "tour de force" de estilo. Janet Malcolm apresenta 41 inícios de texto sobre o pintor pós-moderno David Salle. Como se ela escrevesse as linhas iniciais, não gostasse, e depois começasse tudo de novo. Quarenta e uma vezes.

O perfil a que me referi no início desta resenha, sobre a editora da "Artforum'', se chama "A Garota do Zeitgeist". Longo, toma inacreditáveis 84 páginas da edição brasileira. Comecei-o sem entusiasmo, com meu interesse zero pelo tema. Fui conquistado.

41 Inícios Falsos - Ensaios Sobre Artistas E Escritores
Janet Malcolm
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Porque, apesar de tão erudita, Janet Malcolm não tem nada nada a ver com o que conhecemos por crítica de literatura e arte no Brasil. Escreve em língua de gente, tem humor e fluência.

Em um dos textos finais do livro, ela diz, a respeito de William Shawn, ex-editor da "New Yorker": "Ele jamais dizia alguma coisa que não fosse profundamente inteligente e totalmente inteligível". Janet Malcolm poderia estar falando de si própria.

Está. Por trás do manto fino de suas reportagens, que desvelam os entrevistados com precisão de laser, a monumental Janet Malcolm tem, na verdade, um grande e inescapável tema: ela mesma.

41 INÍCIOS FALSOS
AUTOR: Janet Malcom
TRADUÇÃO Pedro Maia Soares
EDITORA: Companhia das Letras
QUANTO: R$ 54,90 (384 págs.)


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