Em 2005, antes de ostentar carrões de luxo e dentes de ouro, o funk brasileiro prometia "dois socos e três cruzados" a uma mulher em "Dona Gigi", música do grupo Os Caçadores que virou hit nacional.
Uma década e alguns MCs depois, o coro que domina desde festas na periferia até baladinhas universitárias é o "Baile de Favela", de João Simeão, o MC João.
Nela, o funkeiro manda recado para a moça que vem "fervendo": se mexer com sua comitiva, vai voltar "com a xota ardendo".
Longe dos bailes, o que ferve é a discussão sobre o papel da arte em disseminar o machismo, debate que explodiu nas redes sociais após o estupro de uma adolescente de 16 anos por mais de 30 homens, numa comunidade na zona oeste do Rio.
De acordo com o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 47 mil casos de estupro foram registrados no país em 2014, e 90% das mulheres temem ser vítimas de violência sexual.
"Na nossa cultura do estupro, a mulher não é uma pessoa, mas um objeto, e, uma vez objeto, está lá para ser usada, como se não tivesse sentimentos e não fosse um ser humano", avalia a socióloga feminista Eva Blay, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP). "Existe uma parte da música que não só exprime isso, como também ratifica."
Mas, ainda que fazendo a vez de bode expiatório na discussão, o funk não monopoliza o machismo na música.
MPB
Noel Rosa escreveu em 1932: "Mas que mulher indigesta/ Merece um tijolo na testa".
Oitenta anos depois, a dupla sertaneja Fernando e Sorocaba canta sobre se aproveitar da embriaguez feminina: "As mina pira, pira / Toma tequila / Sobe na mesa / (...) Entra no clima / Tá fácil de pegar / Pra cima!".
Em 1947, Dorival Caymmi assinou, em parceria com Antônio Almeida, a canção "O que É que Eu Dou?". Segue a letra: "Eu já fiz tudo pra lhe agradar/ Ela está sempre zangada/ Sempre de cara amarrada/ Será que ela quer pancada?/É só o que lhe falta dar/ Ela quer apanhar!"
"O fato de o funk ser explícito choca as pessoas, mas há músicas machistas consideradas bonitas por terem letras poetizadas. Depende muito de quem canta", diz Djamila Ribeiro, feminista e subsecretária de direitos humanos da Prefeitura de São Paulo.
"A associação desse tipo de música a um só ritmo pode, na verdade, disfarçar outros preconceitos", defende o deputado estadual do Rio Marcelo Freixo (PSOL), um dos autores da lei que reconheceu o funk como movimento cultural no Estado em 2009. O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) tenta torná-la nacional.
Freixo compara a marginalização do gênero à reputação que já teve o samba, relacionado à vadiagem no início do século 20 e hoje considerado patrimônio nacional.
Na Câmara, tramita um projeto de lei que quer proibir dinheiro público a músicos que produzam conteúdo ofensivo às mulheres. A norma já funciona na Bahia e em Goiânia.
DIREITO DE SER DESBOCADO
MC João, a voz do "Baile de Favela", rejeita o rótulo de machista, para o qual diz "não ligar muito". A musa da música não é coagida, mas desafiada sexualmente, argumenta.
Da cartilha feminista, ele diz respeitar o corpo da mulher. "Não é porque está de saia curta que deve ser desrespeitada."
O fluminense Diogo Siqueira, o MC Maneirinho, defende o direito de ser desbocado. Em uma de suas canções, dá ordem a uma mulher, que pede socorro: "Ô, piranha, mama o bonde todo".
"[O proibidão] é uma viagem feita para os solteiros que estão na noite. Tem que ser animado, envolver na batida e colocar o ego do funkeiro lá em cima, por mais que o cara dê duro para ter um Nike", diz.
Hoje, o cantor afirma reconhecer méritos em parte dos protestos. "Precisamos rever algumas músicas, falar mais de amor, não só de sexo a três."
Para a deputada Moema Gramacho (PT-BA), autora do projeto de lei "antibaixaria" na música, existe sim uma preponderância de machismo em gêneros mais populares, como o funk e o pagode.
"Por serem ritmos estimulantes, com músicas que pegam rápido, as letras proliferam", afirma. "Isso se torna popular até entre crianças, e então cria-se uma cultura de violência e de desvalorização de gênero."
A lei que ela quer tornar nacional é estendida também a canções que pregam a homofobia, racismo e que fazem apologia às drogas. A ideia é que conselhos estaduais ou municipais de cultura definam quais letras devem ser punidas.
"O problema é muito amplo: está na estrutura da sociedade", afirma a subsecretária municipal de direitos humanos de São Paulo, Djamila Ribeiro. "[As músicas] são um efeito colateral da sociedade machista. Temos que focar na conscientização da população para transformar essa mentalidade."
CONTRA-ATAQUE
Na contramão, cantoras se lançam para fazer frente ao machismo. Em 2009, a roqueira Pitty dialogou com Mário Lago em "Desconstruindo Amélia". Se a Amélia dele "não tinha a menor vaidade" e era "mulher de verdade", a dela não é "Nem serva, nem objeto / Já não quer ser o outro / Hoje ela é um também".
A própria "Baile de Favela" ganhou sua resposta. Em um vídeo visto mais de 3 milhões de vezes na internet, a cantora Mariana Nolasco pede: "Pode ir quente ou fervendo / Mas respeita o seu par."
Também o funk tem sua onda feminista. Apontada como pensadora contemporânea em curso de filosofia, Valesca Popozuda proclama o domínio do próprio corpo em versos como "Vê se para de gracinha / Eu dou para quem quiser / Que a porra da boceta é minha".
Carolina de Oliveira Lourenço, a MC Carol, toma as rédeas da relação. Em seu maior sucesso, "Meu Namorado é Maior Otário", versa: "Ele lava minhas calcinhas / Se fica cheio de marra / Eu mando ele pra cozinha".
O carimbo feminista veio há um ano, quando militantes na internet abraçaram suas composições e a alçaram a ídolo. Carol o adotou. "Antes, eu não sabia o que era feminismo. Na verdade, não sei até hoje, porque há coisas dentro do movimento que eu ainda não entendo, mas estou descobrindo."