Folha de S. Paulo


Há 80 anos, mulher já levava tijolo na testa na música brasileira

Fabio Braga/Folhapress
Manifestação pelos direitos da mulheres, em 1º de junho, na avenida Paulista
Manifestação pelos direitos da mulheres, em 1º de junho, na avenida Paulista

Em 2005, antes de ostentar carrões de luxo e dentes de ouro, o funk brasileiro prometia "dois socos e três cruzados" a uma mulher em "Dona Gigi", música do grupo Os Caçadores que virou hit nacional.

Uma década e alguns MCs depois, o coro que domina desde festas na periferia até baladinhas universitárias é o "Baile de Favela", de João Simeão, o MC João.

Nela, o funkeiro manda recado para a moça que vem "fervendo": se mexer com sua comitiva, vai voltar "com a xota ardendo".

Longe dos bailes, o que ferve é a discussão sobre o papel da arte em disseminar o machismo, debate que explodiu nas redes sociais após o estupro de uma adolescente de 16 anos por mais de 30 homens, numa comunidade na zona oeste do Rio.

De acordo com o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 47 mil casos de estupro foram registrados no país em 2014, e 90% das mulheres temem ser vítimas de violência sexual.

"Na nossa cultura do estupro, a mulher não é uma pessoa, mas um objeto, e, uma vez objeto, está lá para ser usada, como se não tivesse sentimentos e não fosse um ser humano", avalia a socióloga feminista Eva Blay, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP). "Existe uma parte da música que não só exprime isso, como também ratifica."

Mas, ainda que fazendo a vez de bode expiatório na discussão, o funk não monopoliza o machismo na música.

MPB

Noel Rosa escreveu em 1932: "Mas que mulher indigesta/ Merece um tijolo na testa".

Oitenta anos depois, a dupla sertaneja Fernando e Sorocaba canta sobre se aproveitar da embriaguez feminina: "As mina pira, pira / Toma tequila / Sobe na mesa / (...) Entra no clima / Tá fácil de pegar / Pra cima!".

Em 1947, Dorival Caymmi assinou, em parceria com Antônio Almeida, a canção "O que É que Eu Dou?". Segue a letra: "Eu já fiz tudo pra lhe agradar/ Ela está sempre zangada/ Sempre de cara amarrada/ Será que ela quer pancada?/É só o que lhe falta dar/ Ela quer apanhar!"

"O fato de o funk ser explícito choca as pessoas, mas há músicas machistas consideradas bonitas por terem letras poetizadas. Depende muito de quem canta", diz Djamila Ribeiro, feminista e subsecretária de direitos humanos da Prefeitura de São Paulo.

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"A associação desse tipo de música a um só ritmo pode, na verdade, disfarçar outros preconceitos", defende o deputado estadual do Rio Marcelo Freixo (PSOL), um dos autores da lei que reconheceu o funk como movimento cultural no Estado em 2009. O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) tenta torná-la nacional.

Freixo compara a marginalização do gênero à reputação que já teve o samba, relacionado à vadiagem no início do século 20 e hoje considerado patrimônio nacional.

Na Câmara, tramita um projeto de lei que quer proibir dinheiro público a músicos que produzam conteúdo ofensivo às mulheres. A norma já funciona na Bahia e em Goiânia.

DIREITO DE SER DESBOCADO

MC João, a voz do "Baile de Favela", rejeita o rótulo de machista, para o qual diz "não ligar muito". A musa da música não é coagida, mas desafiada sexualmente, argumenta.

Da cartilha feminista, ele diz respeitar o corpo da mulher. "Não é porque está de saia curta que deve ser desrespeitada."

O fluminense Diogo Siqueira, o MC Maneirinho, defende o direito de ser desbocado. Em uma de suas canções, dá ordem a uma mulher, que pede socorro: "Ô, piranha, mama o bonde todo".

"[O proibidão] é uma viagem feita para os solteiros que estão na noite. Tem que ser animado, envolver na batida e colocar o ego do funkeiro lá em cima, por mais que o cara dê duro para ter um Nike", diz.

Hoje, o cantor afirma reconhecer méritos em parte dos protestos. "Precisamos rever algumas músicas, falar mais de amor, não só de sexo a três."

Para a deputada Moema Gramacho (PT-BA), autora do projeto de lei "antibaixaria" na música, existe sim uma preponderância de machismo em gêneros mais populares, como o funk e o pagode.

"Por serem ritmos estimulantes, com músicas que pegam rápido, as letras proliferam", afirma. "Isso se torna popular até entre crianças, e então cria-se uma cultura de violência e de desvalorização de gênero."

A lei que ela quer tornar nacional é estendida também a canções que pregam a homofobia, racismo e que fazem apologia às drogas. A ideia é que conselhos estaduais ou municipais de cultura definam quais letras devem ser punidas.

"O problema é muito amplo: está na estrutura da sociedade", afirma a subsecretária municipal de direitos humanos de São Paulo, Djamila Ribeiro. "[As músicas] são um efeito colateral da sociedade machista. Temos que focar na conscientização da população para transformar essa mentalidade."

CONTRA-ATAQUE

Na contramão, cantoras se lançam para fazer frente ao machismo. Em 2009, a roqueira Pitty dialogou com Mário Lago em "Desconstruindo Amélia". Se a Amélia dele "não tinha a menor vaidade" e era "mulher de verdade", a dela não é "Nem serva, nem objeto / Já não quer ser o outro / Hoje ela é um também".

A própria "Baile de Favela" ganhou sua resposta. Em um vídeo visto mais de 3 milhões de vezes na internet, a cantora Mariana Nolasco pede: "Pode ir quente ou fervendo / Mas respeita o seu par."

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Também o funk tem sua onda feminista. Apontada como pensadora contemporânea em curso de filosofia, Valesca Popozuda proclama o domínio do próprio corpo em versos como "Vê se para de gracinha / Eu dou para quem quiser / Que a porra da boceta é minha".

Carolina de Oliveira Lourenço, a MC Carol, toma as rédeas da relação. Em seu maior sucesso, "Meu Namorado é Maior Otário", versa: "Ele lava minhas calcinhas / Se fica cheio de marra / Eu mando ele pra cozinha".

O carimbo feminista veio há um ano, quando militantes na internet abraçaram suas composições e a alçaram a ídolo. Carol o adotou. "Antes, eu não sabia o que era feminismo. Na verdade, não sei até hoje, porque há coisas dentro do movimento que eu ainda não entendo, mas estou descobrindo."


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