Folha de S. Paulo


Romance ressoa 'voz de uma geração' em tempos de violência contra gays

Quando criança, Hanya Yanagihara gostava de desenhar. O pai, um médico, a encorajou a rascunhar o corpo humano. Vivo ou morto.

"Ele tinha uma amiga patologista que levantou a pele flácida do peito [de um cadáver] para eu ver o que tinha dentro. Nunca temi a morte. Era um papo familiar na mesa de jantar."

Hoje Yanagihara digere críticas de que passagens sobre violência sexual contra um menor de idade, de seu recém-lançado "Uma Vida Pequena", são excessivamente gráficas –memórias que o protagonista tem de torturas passadas, diz o jornal britânico "The Guardian", "têm o efeito infeliz de transformar contos sádicos de abuso infantil em recompensa narrativa".

Para a autora norte-americana, as ilustrações da infância foram "uma ótima lição" para uma arte que dominaria mais tarde, a escrita.

"Qualquer artista que quer ser sério sobre alguma coisa deve ser capaz de olhá-la de perto", diz Yanagihara à Folha, no prédio do "New York Times", onde edita a "T", revista de estilo do jornal.

Divulgação
A escritora Hanya Yanagihara, autora de 'Uma Vida Pequena' (Record)
A escritora Hanya Yanagihara, autora de 'Uma Vida Pequena' (Record)

No romance, põe sob sua lupa literária três décadas da amizade de quatro homens –de pós-universitários que torcem para não passar mal com "o de sempre" (sopa mais sanduíche por US$ 5) num muquifo vietnamita em Chinatown a marmanjos bem-sucedidos na vida profissional, mas nem sempre na afetiva.

A princípio, soa como mais uma tentativa de capturar "a voz de uma geração".

Rebentam agruras da geração "millennial", "típicas de qualquer jovem que vem para Nova York", diz a autora. "Tudo parece uma competição, e todos têm certeza absoluta de que serão os primeiros na linha de chegada."

Não demora para que a narrativa enverede para um caminho mais sinistro, focada em Jude, órfão criado num monastério que parece plagiado das páginas de Marquês de Sade.

Contam-lhe que foi achado recém-nascido "dentro de um saco de lixo cheio de casca de ovo, alface podre e espaguete estragado". Agredido física e sexualmente, adolesce rezando "por um deus [com minúscula] no qual não acreditava".

FLORES E PEDRAS

"Uma Vida Pequena" é afeita a superlativos, a começar por suas 784 páginas.

Finalista do National Book Award e do Man Booker Prize, a obra frequentou a lista de melhores de 2015 de várias publicações ("Washington Post", "The Economist").

A revista "The Atlantic" a recebeu como "o grande romance gay"que faltava –a sexualidade é uma das várias questões em jogo.

Para o "Guardian", "uma leitura devastadora, que vai deixar seu coração, assim como o do Grinch [duende que odeia o Natal criado por Dr. Seuss], um pouco maior".

Mas o editor de Yanagihara chegou a pedir para que a escritora baixasse o tom. Ela se recusou. "Há quem entenda que há coisas que o leitor não aguenta. Já eu acho que ele deveria ser encorajado a trabalhar mais, e às vezes isso significa lidar com emoções desconfortáveis."

Para a escritora, forçar a máxima "viveram felizes para sempre", isso sim, "é um jeito cruel de pensar a vida".

"Queria um protagonista que nunca melhorou. E que o leitor se perguntasse por que estamos tão obcecados com essa ideia de felicidade –se não formos felizes na vida, é por que não tentamos o bastante", comenta.

Jude até tenta e, se não fracassa em absoluto, muito se deve à companhia dos três melhores amigos.

Há o arquiteto Malcolm, que se diz "pós-negro" para não ter de se questionar sobre o que é ter raiz afro-americana e não conhecer a pobreza.

Filho de haitianos, o aspirante a pintor Jean-Baptiste tenta transcender a roda artística que faz "uma porcaria de arte" enquanto vive "numa dieta de cervejas ironicamente baratas".

O mais próximo é Willem, garçom que quer ser ator e com quem o protagonista tem um "bromance" (forte amizade entre dois homens).

Já Jude St. Francis permanece indecifrável para o trio. Não explica por que manca e tem crises convulsivas. Sempre usa manga comprida, mesmo no verão. Jamais fala do passado. É avesso a qualquer toque.

"É o pós-homem", diz JB. "Não sabemos nada sobre ele. Ele é pós-sexual, pós-racial, pós-identidade, pós-passado."

PÓS-FAMÍLIA

E o livro de Yanagihara é pós-família, ao menos na concepção tradicional do termo. Ela se inspirou em seu grupo de amigos, "nenhum casado, nenhum com filhos" –ela inclusa. "Nunca foi algo que quis, e sempre soube que era algo que jamais teria."

"Essas famílias alternativas proliferam em Nova York, onde ninguém tem um passado e todos querem criar um futuro", complementa.

A cidade onde vive há duas décadas, continua a autora, "sempre vai servir de refúgio para pessoas que de alguma forma eram ovelhas negras em suas casas, como os gays rejeitados que vieram para cá nos anos 1970".

É uma maturidade "não reconhecida na literatura e nos filmes, mas que existe".

A certa altura, um dos personagens é chamado de Peter Pan –tem 37 anos e prefere os amigos aos amores. Ele rebate: "Por que a amizade não é tão boa quanto uma relação? Ou até melhor?".

RAIO-X - HANYA YANAGIHARA
ORIGEM Havaí (EUA)
JORNALISMO Escrevia sobre turismo para a "Condé Nast Traveler" e hoje edita a "T", revista de estilo do "New York Times"
LIVROS "The People in the Trees" (2013) e "Uma Vida Pequena" (2015)

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Leia trecho do livro

Willem nunca discutiu aquilo com Jude, mas, nos anos que se seguiram, ele o veria com todo tipo de dor, dores grandes e dores pequenas, o veria estremecer diante de pequenos ferimentos e, às vezes, quando o desconforto era muito forte, o veria vomitar, ou se dobrar no chão, ou simplesmente apagar e ficar impassível, como fazia agora na sala de estar. Mas, embora fosse um homem que cumpria suas promessas, havia uma parte dele que se perguntava por que nunca tocara no assunto com Jude, por que nunca o fizera falar como era aquela sensação, por que nunca ousara fazer o que o instinto lhe mandara fazer uma centena de vezes: sentar-se ao lado dele e massagear suas pernas, tentar forçar de volta à submissão aqueles terminais nervosos rebeldes. Em vez disso, ali estava ele no banheiro, mantendo-se ocupado, enquanto a poucos metros um de seus melhores amigos estava sentado num sofá nojento, empreendendo a jornada lenta, triste e solitária de volta à consciência, de volta à terra dos vivos, sem ninguém ao seu lado.

UMA VIDA PEQUENA
(A little life)
AUTOR Hanya Yanagihara
TRADUÇÃO Roberto Muggiati
EDITORA Record
QUANTO R$ 59,90


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