Folha de S. Paulo


Primeiro projeto póstumo de Zaha Hadid é inaugurado na Itália

Navios de cruzeiro regularmente desembarcam milhares de passageiros para visitar atrações além das docas, mas no caso da antiga e graciosa cidade italiana de Salerno, ao sul de Nápoles, o primeiro local de visitação obrigatória pode ser o terminal de desembarque em si, criado pela arquiteta Zaha Hadid e inaugurado na segunda-feira (9).

No longo trajeto marítimo de aproximação, a silhueta fluente e horizontal da estrutura de concreto, completada por paredes inclinadas nas duas extremidades, se destaca dos edifícios em estilo clássico que se estendem à beira-mar. Pensando naquela paisagem vista ao longe, do mar, e visualizando as possibilidades, Hadid selecionou o local navegando em uma lancha da polícia, antes de concluir o projeto que venceu um concurso arquitetônico em 2000.

O primeiro-ministro italiano Matteo Renzi visitou o local no domingo, definindo a edificação como uma obra-prima. A ausência de Hadid, que morreu em 31 de março aos 65 anos sem ver a obra concluída, foi duramente sentida nos dois dias. Em tributo, Salerno, uma cidade de 133 mil habitantes, se decorou inteira com o retrato da arquiteta, e metade dos 400 funcionários de seu escritório voaram de Londres para celebrar a inauguração.

Em um país no qual as regiões e cidades desenvolveram fortes identidades ao longo dos séculos, Vincenzo de Luca —até recentemente prefeito de Salerno e hoje governador da região da Campânia— queria uma edificação funcional, com presença forte e singular que também expressasse a individualidade da cidade. Como matéria de política de planejamento urbano, a beleza era importante.

A cidade encomendou o terminal na esperança de aliviar o congestionamento em suas vias e para encorajar uma maneira sustentável de visitar a região, porto a porto. O projeto futurista tem precedentes italianos. Desde os anos 1920, as autoridades determinadas a industrializar o país encomendam edificações progressistas, em estilo modernista —primeiro estações de trem, como as de Florença, Nápoles e Roma, e depois paradas de repouso em rodovias.

As autoridades descrevem o terminal marítimo como essencial para o planejamento financeiro e ambiental da cidade, e para suas aspirações turísticas. Quando o porto for ampliado, a expectativa é que os navios de cruzeiro se unam às balsas e hidrofólios que já navegam as águas da famosa costa amalfitana e da menos conhecida região de Cilento.

Tal como visto do mar e da esplanada marinha, que se curva ao longo da baía em forma de crescente, o topo inclinado do edifício de Hadid forma uma paralela com a linha do horizonte na água, capturando uma sensação de fluxo e movimento. Os dois extremos do longo edifício são inclinados como a proa de uma embarcação, lembrando navios e energizando a silhueta. De noite, a edificação brilhantemente iluminada reluz como uma lanterna.

Do lado de dentro, o edifício é uma intrincada coreografia de funções entrelaçadas, rampas e terraços justapostos.

"Pensamos no edifício como uma ostra, com uma casca dura no topo e embaixo, e um interior mais suave, líquido, orgânico", disse Paola Cattarin, a arquiteta do projeto.

O escritório de Hadid realizou muitos projetos de museus e centros culturais, tipos de edificação que permitem ampla latitude de projeto. Mas um terminal para navios funciona mais como um aeroporto, com requisitos fixos, tais como áreas de embarque e desembarque, bem como rotas secundárias para bagagens, escritórios administrativos e áreas de serviço.

Depois de mostrar suas passagens e passaportes, os passageiros que embarcam caminham por rampas de gradiente gentil no cavernoso saguão de entrada, que o conectam ao nível do deque abaixo. Os percursos em si ajudam na orientação, com a inclinação e indicações visuais orientando os visitantes. Rampas e paredes se relacionam umas às outras, curvas se inclinando ante curvas em uma interpenetração espacialmente rica e perfeitamente adequada ao país que inventou o espaço barroco.

Os arquitetos tiraram vantagem do confiável vento de Salerno para projetar a ventilação natural do interior, que tornaram mais caloroso com o uso de madeiras claras.

Então veio o processo de construção, constantemente interrompido, que durou mais de 12 anos. Cattarin atribui os atrasos a concordatas de empreiteiras, demora em concorrências, atrasos na liberação de verbas e à lentidão da burocracia: o projeto ajuda a relembrar por que Roma não foi construída em um dia. O cronograma dos projetos de Hadid na China, ainda maiores e mais complexos que o de Salerno, é de menos de dois anos, segundo seu escritório.)

O terminal —ainda que único em termos de forma e abstração, nesta cidade predominantemente tradicional— foi projetado contextualmente. "Estudamos como a água se unia à paisagem, e respondemos ao contexto cultural", disse Cattarin.

A topografia aquática do topo foi projetada como uma estrutura de concha, e sua engenharia foi concebida de forma a permitir que as dobras, depressões e curvas sustentem os amplos vãos desprovidos de colunas. A equipe de arquitetos, que inclui Patrik Schumacher —que falou pelo escritório na cerimônia de inauguração na segunda-feira, realizada sob um temporal— projetou os interiores para que os espaços ecoassem a maneira pela qual a velha cidade medieval serve de núcleo a Salerno sobe e desce colinas, com estreitas vielas que se abrem em piazzas e avenidas perto da água.

"Queríamos criar um efeito de contração e expansão", disse Cattarin.

A construção do terminal foi como uma espécie de evento cívico em câmera lenta. Enquanto ele era construído, crescia a curiosidade dos moradores, e para alguns o canteiro de obras se tornou parte do passeio noturno. Multidões se reuniram no local antes e depois do jantar para testemunhar o processo de despejar o concreto da cobertura superior, que durou uma noite inteira.

Nessa terra natal do classicismo, colonizada pelos antigos gregos, o terminal radicalmente contemporâneo pode bem se unir aos templos de Pesto e até às ruínas da Pompeia romana como um dos monumentos da área.

Com a morte de Hadid, a inauguração também se tornou oportunidade para que os agradecidos cidadãos se despedissem da arquiteta que deu à sua cidade um monumento de inesperada beleza. Cartazes foram espalhados por toda Salerno, com uma foto de Hadid e um texto que dizia "adeus, Zaha Hadid, gênio e modernidade, inspiração e transformação. Salerno zelará com orgulho pelo seu terminal marítimo e sempre o acalentará".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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