Folha de S. Paulo


Em livros policiais e contos, Alberto Mussa conta outra história do Brasil

No começo, ouvia a história de uma bisavó que comia pimenta crua –hábito, comentava-se, dos antepassados índios. Só um exame de DNA, feito na fase adulta, confirmou o que era lenda familiar: pelo lado da mãe, o escritor carioca Alberto Mussa tem ascendência indígena. Por isso, costuma dizer, é brasileiro há 15 mil anos.

Essa é uma herança que aparece nas histórias escritas pelo autor de 54 anos em "Os Contos Completos", que chega agora às livrarias. E não só o passado indígena do país, diga-se, mas também os passados africano e árabe –influências que compõem uma obra que narra outra história do Brasil.

Dessa história, não fazem parte só os figurões da política e da cultura, mas também escravos, capoeiristas, sambistas, boêmios, bicheiros, apostadores, ciganos, mães de santo, entidades de umbanda.

Ricardo Borges/Folhapress
rio de Janeiro, RJ,BRASIL, 03/05/2016; Retrato do escritor carioca Alberto Mussa, que está lançando seus Contos Completos. (Foto: Ricardo Borges/Folhapress. ) *** EXCLUSIVO FOLHA***
O escritor Alberto Mussa em sua casa, no Rio

Personagens que têm ajudado seu criador a ganhar projeção nos últimos anos. Em 2015, Mussa foi terceiro lugar na última edição do prêmio Oceanos. Mas o escritor já faturou, entre outros, os prêmios Casa de Las Américas, o Machado de Assis (duas vezes) e o da Academia Brasileira de Letras.

"'A Primeira História do Mundo' foi quase unanimidade. O Mussa tem um projeto literário de muita seriedade", afirma Selma Caetano, curadora do Oceanos, sobre o romance finalista.

Selma se refere ao terceiro de uma pentalogia de livros policiais, nos quais Mussa resolveu contar a história do Rio de Janeiro por meio de seus crimes –cada um passado em uma época. "A Primeira História..." parte de um caso de 1567, no qual um serralheiro foi encontrado morto com sete flechas.

O primeiro, "O Trono da Rainha Jinga", narra uma série de crimes atribuídos a uma irmandade de escravos. O quarto volume, "A Hipótese Humana", sai no ano que vem.

"Fiz uma opção pelo gênero policial, porque a grande maioria de romances de mistério não são bons livros, não buscam uma literatura mais profunda", diz Mussa.

Algumas histórias da série de romances são destacadas como contos independentes em "Os Contos Completos". Outra parte traz recriações de Machado de Assis, como o texto "A Leitura Secreta", no qual Mussa une "A Causa Secreta" e "A Cartomante", do Bruxo do Cosme Velho.

O primeiro livro do autor, "Elegbara" –um dos nomes de Exu, orixá que atua como mensageiro entre o mundo dos deuses e o dos homens–, está inteiro no volume.

Nada mau para quem quase foi matemático. Mas, pelo visto, estava tudo escrito. Jovem, Alberto Mussa ouviu de uma cartomante consultada pela família que passaria no vestibular em matemática, mas seria feliz em outro ofício.

Depois, trocou os números pelo curso de letras na Universidade Federal do Rio, mas cansou de estudar literatura de um modo que privilegiava demais a linguagem –e logo trocou para a linguística.

O amor pela história já estava ali, por isso acabou estudando a linguística histórica. Foi quando a voz dos antepassados falou alto, e Mussa foi aprender tupi antigo.

Aliás, em "Meu Destino É Ser Onça", livro menos famoso que a série policial, o carioca reconstrói a partir de fontes antigas um mito tupi sobre o canibalismo. O interesse pela história surgiu depois de ler trechos de "Cosmografia Universal", do frade André Thevet, que conviveu com os tupinambás em 1555.

PRÉ-ISLÂMICO

Sozinho, aprendeu também árabe clássico –outro livro menos conhecido, "Os Poemas Suspensos", apresenta traduções do escritor para versos pré-islâmicos.

O sobrenome, do lado do pai, é libanês. E essa origem também está em sua obra. "O Enigma de Qaf", o primeiro livro premiado com o Casa de Las Américas, traz um narrador que reconstrói a história de um poeta pré-islâmico.

O carioca também aprendeu idiomas africanos, como o quimbundo e o iorubá –este frequentando terreiros. Mussa mais tarde acabou por fazer iniciação como babalaô, nome dado ao sacerdote do orixá Ifá, responsável pela interpretação dos mitos.

Documentados por João do Rio, os babalaôs desapareceram do Brasil nos anos 1930 –e só retornaram na década de 1990, com a imigração de sacerdotes cubanos. Ifá também é o nome de um sistema divinatório regido pelo orixá Orunmilá, o deus que conhece o destino dos homens.

"Não jogo, não dou consulta. Foi uma experiência de vida importante", afirma o escritor, que também usou a iniciação como forma de conhecer a mitologia, assunto que afirma ler compulsivamente.

Leitor desde jovem –na casa de seus pais, a biblioteca ia até a garagem–, Mussa destaca a influência de Jorge Luís Borges. Não só pelo interesse nos romances policiais, mas por seus narradores eruditos, que gostam de abstrações.

A diferença é que o brasileiro é um autor mais acessível que o argentino. O jovem que estudou letras numa época em que a experimentação de linguagem se impunha sobre o enredo quer ser um contador de histórias.

Como os antepassados.

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UM RASTRO DE SANGUE Os crimes que formam o Rio de Janeiro nas obras de Alberto Mussa

'O Trono da Rainha Jinga'

Neste romance, uma série de crimes que começa a ocorrer no Rio, em 1626, passa a ser atribuída a uma irmandade de escravos, trazendo pânico à cidade. Sempre com reflexões filosóficas, Mussa tenta discutir a questão do mal na sociedade. Os crimes se passam no centro da capital fluminense

O Senhor do Lado Esquerdo

Neste livro, um secretário do então presidente da República marechal Hermes é assassinado em uma casa de swing, em 1913, onde antes morava a Marquesa de Santos antes da derrubada da monarquia. No romance, Mussa discute a noção de virilidade masculina e a competição entre os homens

A Primeira História do Mundo

Mussa narra a história do primeiro assassinato registrado no Rio, em 1567, dois anos após a fundação da cidade, quando um serralheiro foi encontrado morto no Flamengo com sete flechas. A discussão do romance é a ideia de que a ordem social só é mantida com o controle da sexualidade da mulher

A Hipótese Humana

Passada em 1854, a trama parte de um assassinato numa casa de correção no bairro do Catumbi, onde mais tarde foi erguido um presídio no Rio. A obra envolve uma intriga com os grupos de capoeira da cidade. Ainda inédito, é baseado numa história familiar do autor

A Origem da Espécie

Os Contos Completos
Alberto Mussa
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O romance ainda não foi escrito, mas se passará durante a época da Inquisição no Rio, entre 1730 e 1740. Mussa quer discutir a hipótese de que a espécie humana é naturalmente etnocêntrica. A referência mitológica devem ser as histórias sobre a descoberta do fogo

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OS CONTOS COMPLETOS
AUTOR Alberto Mussa
EDITORA Record
QUANTO R$ 42,90 (400 págs.)


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