Folha de S. Paulo


'Temos de trabalhar para sair do atraso', diz Mendes da Rocha

"Nenhum arquiteto pode estar satisfeito. Temos que trabalhar para sair do atraso em todos os sentidos", disse Paulo Mendes da Rocha na manhã de sexta, ao vencer o Leão de Ouro pelo conjunto da obra. "A construção da cidade que nos interessa é uma questão política. Essa é uma lição de Veneza."

Maior arquiteto vivo do país, Mendes da Rocha acaba de entrar para um time de poucos que venceram esse prêmio máximo da Bienal de Arquitetura da cidade italiana, entre eles o holandês Rem Koolhaas, o canadense Frank Gehry e o português Álvaro Siza.

Dez anos depois de receber o Pritzker, maior honraria mundial de sua área, ele é o primeiro brasileiro a ganhar o Leão de Ouro, "mais sedutor entre os prêmios", nas palavras dele. Mendes da Rocha, aliás, foi reconhecido em Veneza na primeira edição em que um latino-americano, o chileno Alejandro Aravena, comanda a exposição.

Fabio Braga/Folhapress
Paulo Mendes da Rocha, 87, em seu escritório no centro de São Paulo
Paulo Mendes da Rocha, 87, em seu escritório no centro de São Paulo

Leia a seguir a íntegra da entrevista concedida pelo arquiteto à Folha na manhã desta sexta, logo depois do anúncio de sua condecoração.

*

Folha - Que significado tem receber Leão de Ouro em Veneza?
Paulo Mendes da Rocha - O que eu posso dizer é que Veneza, para nós da arquitetura, é um paradigma da construção da cidade. A cidade porque desejada, a cidade politicamente concebida, em termos de mercado, comércio, no coração da Europa, todos esses horizontes comoventes da arquitetura.

Veneza é exemplar para tudo isso. É um lugar impróprio e com obras extraordinárias. A Bienal de Veneza tem um significado muito grande porque vem desse lugar, dessa gente, dessa política. E por outro lado é um prêmio encantador porque a figura do leão de San Marco é muito atraente e sedutora, o leão alado. Não há prêmio mais encantador, mais sedutor.

Não tenho mais condição de fazer papel de modesto. Estou muito alegre com o prêmio antes de mais nada. Eu nunca trabalhei sozinho, portanto eu faço disso uma forma de abraçar todos aqueles que já trabalharam comigo, engenheiros e arquitetos, o Mackenzie onde eu me formei e a FAU.

Sua escolha partiu de Alejandro Aravena. Como vê a obra dele?
Não está na hora de eu fazer nenhum comentário sobre nenhum colega. Respeito absolutamente, mas ele é um latino-americano, chileno, muito respeitado, muito jovem e interessante.

Aravena, em seu comunicado oficial, disse que sua arquitetura é atemporal. O que acha dessa afirmação?
Essa observação é muito interessante. Gostaria que de fato ela fosse atemporal. Minha arquitetura é oportuna, e a vida nunca é igual. É importante considerar isso sem que a arquitetura seja espantosa, novidadeira.

É por aí mesmo. A arquitetura tem de ser oportuna. As transformações da nossa vida é que são permanentes.

Tendo vencido o Pritzker, o maior prêmio da arquitetura, e agora o troféu em Veneza, está satisfeito com onde conseguiu chegar?
Nenhum arquiteto, do ponto de vista da arquitetura como reflexão ou conhecimento, pode estar satisfeito. Ser um arquiteto em São Paulo, uma cidade tida como desastre, é uma tristeza. Essa é mais uma lição de Veneza, que nos mostra que a arquitetura é uma questão de caráter político, é decisão. A construção da cidade que nos interessa é uma questão política.

Nesse sentido, você vê uma saída pela arquitetura para os desastres de São Paulo?
Numa cidade como São Paulo você jamais vai ter um território original para fazer uma cidade ideal. Nossas cidades são grandes, malfeitas e consolidadas do ponto de vista da construção.

Talvez isso que estamos chamando de ocupação possamos imaginar de forma planejada, pensar a transformação de uso dentro das mesmas construções, uma nova ocupação do mesmo lugar. Amanhã nós podemos planejar transformações de uso para edifícios que não serão demolidos, portanto as grandes transformações teriam de ser da infraestrutura.

Na atual crise política, essa revolução é possível?
O que se está vendo nesse quadro horrível é, de qualquer modo, uma tentativa de correção de rumos. Sem ser otimista, entretanto, você poderia se animar de esperanças, porque depende de todos nós. Temos de trabalhar para sair do atraso em todos os sentidos da palavra. É uma visão de caráter revolucionário sem que essa palavra faça imaginar mortes, tiros e baionetas. É revolução no sentido de rápidas transformações. É o que todos queremos.

Como seria então essa revolução?
Nenhum de nós quer estabelecer um estilo para arquitetura. É a arquitetura como forma peculiar de conhecimento, é uma disciplina muito interessante. A arquitetura é muito específica da nossa condição humana de conhecimento.

As escolas de arquitetura deviam ter influência no ensino de maneira geral. Para as crianças, eu acho indispensável que se considere a mecânica fundamental, os princípios fundamentais que regem a natureza, coisa que qualquer criança entende porque criança empina pipa, brinca com bola de gude, piões, muito mais que essa nossa bobagem de fazer figurinha de isopor. A grande revolução que nós gostaríamos de ver é no ensino desde as primeiras letras. É uma questão mundial.

Sua obra e seu pensamento sempre foram associados à esquerda. Num momento de conservadorismo aflorado, acredita que essa visão sai prejudicada?
Essa divisão entre esquerda e direita já me parece esgotada. O que acontece é que nós temos que transformar tudo isso. É impossível você imaginar uma cidade que não seja feita por interesse social amplo, transporte público, preservação do ambiente natural, evitar a poluição. Todas essas questões envolvem o interesse social.

Tenho impressão que estamos na hora de ouvir o que está acontecendo em torno de nós. Se a população do país não tiver uma visão de reorientação dessa rota do desastre do individualismo, não adianta você dizer qual é a sua opinião. Estou querendo ouvir a população. Vai haver novas eleições no futuro, as coisas horríveis acabaram vindo à tona. A sociedade ficou estupefata diante das revelações dos últimos tempos. Isso não deixa de ser bom. Se você não contar com os outros não tem mais nada com que contar. Não temos mais nada senão nós mesmos. O resto é passado ou futuro, o agente atual somos nós, os vivos ao mesmo tempo.


Endereço da página: