Folha de S. Paulo


Novo livro do best-seller Jon Krakauer esmiúça estupros em universidades

Numa madrugada pós-bebedeira em 2010, a estudante universitária Allison Huguet foi acordada no sofá pelos gemidos de seu amigo de infância, o corpulento jogador de futebol americano Beau Donaldson, que havia arrancado a calça jeans e a calcinha dela. A garota sentia muita pressão e muita dor.

O crime abre "Missoula", novo livro-reportagem do jornalista americano Jon Krakauer, que esmiúça uma espécie de epidemia de estupros em ambientes universitários nos EUA a partir de uma cidade em particular: Missoula, no bucólico Estado de Montana, no norte do país, que registrou mais de 350 casos semelhantes entre 2008 e 2012.

"Escolhi Missoula porque os índices de estupro ali até que estão na média; nem piores nem melhores do que no resto dos EUA", diz Krakauer, 62, por telefone, à Folha.

Susan Stava/The New York Times
O autor Jon Krakauer na United States Military Academy, em Nova York
O autor Jon Krakauer na United States Military Academy, em Nova York

O autor best-seller, colaborador de publicações como "Outside" e "National Geographic", já relatou sua malfadada expedição ao cume do Everest em "No Ar Rarefeito" e documentou os passos do jovem Christopher McCandless nos cantos remotos da América em "Na Natureza Selvagem" –os dois viraram filmes.

Em "Missoula", o jornalista se embrenha por outros locais ermos: entrevista vítimas e percorre os meandros do Judiciário, das instâncias universitárias e das investigações policiais para traçar um painel da impunidade de estupradores, em geral jogadores do time de futebol americano local, orgulho da cidade, que se aproveitam de mulheres alcoolizadas.

"Há uma cultura nos EUA de certos grupos se safarem mais facilmente da Justiça", diz. "Isso explica casos como o do [comediante] Bill Cosby."

Atletas universitários, como os descritos na obra, "aprendem que podem fazer o que quiserem, que podem ter a mulher que quiserem".

A discussão esbarra na própria tradição universitária americana das chamadas fraternidades –espécies de repúblicas acadêmicas que usam trotes violentos (o "hazing") como prova de fogo para admissão de novos membros e onde o consumo de álcool se dá em quantidades praticamente industriais.

'O QUE ELA VESTIA'

"O álcool afeta a equação indiretamente. Só faz com que a Justiça exima os culpados", diz o autor. "O problema é a falta de compreensão generalizada sobre o que é o estupro: há muitos que creem que se a mulher não luta por sua vida, então consentiu com o crime. Após um estupro, a primeira coisa que apontam é o que ela vestia e se havia bebido."

Entre relatos fornecidos diretamente pelas vítimas ao autor, ele distribui farto material documental: depoimentos, resultado de laudos que embasam a tese de que tanto polícia quanto promotoria atuaram com indiferença em relação aos crimes, perpetuando as subnotificações de estupro.

Krakauer relata, por exemplo, como a promotora local foi leniente e como deixou o cargo para ser advogada de um querido jogador do time da cidade acusado de estupro num julgamento espetacularizado.

"O chocante é que a impunidade nos EUA é igual à de sociedades não civilizadas", diz.

MAIORIA SE SAFA

Se é certo que as vítimas de estupro entram num enorme escrutínio quando denunciam o crime, coisa quase semelhante ocorre a jornalistas que cobrem o assunto.

Em 2014, a revista "Rolling Stone" viveu momento editorial desastroso após publicar reportagem sobre um suposto estupro grupal na Universidade da Virginia, costa leste dos EUA, calcada no depoimento inconsistente de uma garota que resultou numa reportagem não confirmada, o "erro jornalístico" do ano.

"Foi um desserviço", diz Krakauer. "A reportagem deu munição para dizerem que vítimas mentem", afirma o autor. "Meu livro é um contra-argumento. Os jornalistas precisam fazer o trabalho direito."

Krakauer fez um pacto com as vítimas que entrevistou. Disse que as denunciaria caso percebesse informações falsas. "Acreditei nelas, mas chequei tudo o que disseram com outras fontes e dados."

Após a publicação de "Missoula", ele enfrentou críticas por não ter entrevistado figuras-chave como a promotora de Justiça local ou autoridades universitárias.

"Queria entrevistar essas pessoas, mas esperei até o último momento, para que isso não atrapalhasse minha investigação. Eles não aceitaram", diz. Segundo o autor, a promotora ameaçou processá-lo e barrar a publicação.

O autor afirma que polícia, promotoria e Judiciário precisam ser treinados a lidar com as particularidades desse tipo de crime: "Precisam saber como o trauma afeta a memória das vítimas", afirma.

"Estupradores acabam se safando em mais de 90% dos casos", segundo Krakauer.

Missoula
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Há dois anos, Brooke, aluna da Universidade Brigham Young, no Estado de Utah, denunciou ter sido violentada por um colega, mas acabou punida de acordo com o código de honra da escola, já que ela consumira LSD naquela noite.

MISSOULA
AUTOR Jon Krakauer
TRADUÇÃO Sara Grünhagen
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 59,90 (472 págs.)

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Conexões

DENTRO DA TELA Jon Krakauer é interpretado por Michael Kelly no filme 'Evereste' (2015), de Baltasar Kormákur, inspirado na catastrófica expedição da qual participou em 1996, relatada no livro 'No Ar Rarefeito'

FORA DA TELA Sean Penn dirigiu 'Na Natureza Selvagem', baseado no livro-reportagem homônimo de Krakauer sobre o jovem americano Christopher McCandless, que resolveu se aventurar sozinho pelo Alasca

O EQUÍVOCO 1 Em 2014, a 'Rolling Stone' publicou matéria sobre suposto estupro grupal na Universidade de Virgínia cujas inconsistências a levaram a ser tida como o "erro jornalístico do ano"

O EQUÍVOCO 2 "Making a Murderer", da Netflix, é uma série documental sobre o caso de um americano erroneamente condenado por estupro no condado de Manitowoc, em Wisconsin

O TROTE A cultura das fraternidades e seus trotes violentos nas universidades americanas são tema do filme independente 'Goat' (2016), com Nick Jonas, exibido no Festival de Berlim e sem previsão de estreia no Brasil


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