Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Beyoncé dá verniz plástico à questão racial em novo álbum

Um furacão chamado Beyoncé varre os EUA. Desde janeiro, quando lançou "Formation", a maior artista pop da atualidade deu verniz plástico à questão mais candente da América de Obama -a relação entre negros e brancos no país mais rico do mundo.

Sem alarde, "Lemonade", um filme alinhavando as músicas de seu novo álbum, foi divulgado no último fim de semana. Nessa verdadeira experiência audiovisual, está a chave para entender o universo de que fala a cantora na fase em que parece abraçar e exaltar com potência máxima sua própria negritude.

Quando cantou "Formation", música que lidera sua próxima turnê, no intervalo do Super Bowl, a final do futebol americano em janeiro, Beyoncé incomodou ao levar a questão racial a uma arena antes avessa a protestos. Também foi atacada por de repente se "revelar" negra no branquíssimo mundo pop.

Reprodução
A cantora Beyoncé no filme
A cantora Beyoncé no filme "Lemonade"

Outros se zangaram com o que viram como um espetáculo narcisista da cantora.

Nesse ponto, "Lemonade" e seus vídeos de alto teor autobiográfico, quando não confessional, podem ser lidos como um ataque a seu marido, o rapper Jay Z. Há tempos, a relação conturbada deles estampa tabloides pelo mundo.

Não interessa. O filme da cantora é um espetáculo visual arrebatador. Beyoncé, que nasceu no Texas e aqui parece forçar mais seu sotaque sulista, reenquadra de forma estonteante o antigo sul escravocrata de seu país e toda a violência racial que atravessa essa sua América.

Ela revê e atualiza as paisagens de William Faulkner, Mark Twain, Harper Lee, Ralph Ellison e tantas outras vozes da literatura americana que tentaram retratar o fio desencapado das tensões que levam à morte pela cor da pele.

Uma mulher de vestido branco pendurada numa árvore lembra "Strange Fruit" de Billie Holiday. Outra cena mostra o rosto de Nina Simone na capa de um disco. Mas enquanto reverencia pilares do jazz, um estilo musical que nasceu e cresceu negro, Beyoncé aqui também parece se reinventar na música.

Longe dos refrões fáceis do pop convencional, a cantora flerta com o country em canções como "Daddy Lessons", das mais fracas do álbum, e mergulha em referências dos anos 1990 nas faixas mais fortes. Criada em parceria com o The Weeknd, "6 Inch" é uma obra-prima, calcada no trip hop visceral da era Portishead e Massive Attack.

Mesmo baladas mais fracas ganham vulto em "Lemonade" quando servem de trilha sonora para momentos de militância mais óbvia, em que aparecem as mães de jovens assassinados pela polícia americana, como Trayvon Martin e Michael Brown.

O rosto da modelo Winnie Harlow, descolorido pelo vitiligo, surge em várias cenas mais perto do fim do filme, uma síntese da democracia racial defendida por Beyoncé. Em "Freedom", hino histérico que evoca Aretha Franklin, a cantora surge loira, de cabelos lisos, reafirmando todo esse hibridismo.

"Lemonade" tem a força estranha de uma mulher vestindo Cavalli -o vestido amarelo das primeiras cenas do filme- destruindo carros com um taco de beisebol.

Beyoncé aqui parece se esforçar para reencarnar a fúria de Nina Simone na pele de uma diva do século 21. E há quem diga que deu certo.

LEMONADE
ARTISTA Beyoncé
QUANTO cerca de R$ 14 a mensalidade da assinatura do serviço de streaming Tidal
AVALIAÇÃO ótimo 


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