Folha de S. Paulo


'Escrevo sobre o que a história omite', diz autora vencedora do Nobel

Eram chamados de "falcões de Chernobil" os pilotos de helicóptero que sobrevoavam o reator nuclear em chamas, sem nenhum equipamento de proteção, nem mesmo uma simples máscara.

Tinham de chegar bem perto do incêndio e pôr a cabeça para fora para jogar areia no reator. Acabavam aspirando muito material radioativo. Alguns morreram de câncer, outros tiveram problemas neurológicos, enlouqueceram ou se suicidaram. Não fosse por eles, a nuvem radioativa teria se alastrado pela Europa.

Foi um desses pilotos que levou a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch a escrever "Vozes de Tchernóbil "" Crônica do Futuro", que a Companhia das Letras lança nesta semana marcando os 30 anos do desastre em Chernobil, o pior acidente nuclear da história.

"O piloto ligou e disse que precisava falar comigo o mais rápido possível porque tinha pouco tempo de vida", contou Svetlana à Folha em Bogotá, onde participou de uma feira literária nesta semana.

"Disse: isso nunca aconteceu antes, você precisa escrever para que, um dia, alguém consiga a entender"

No acidente de 26 de abril de 1986, 31 pessoas morreram e 50 sucumbiram à síndrome radioativa aguda alguns dias depois. Calcula-se que mais de 4.000 tenham morrido de doenças causadas pela radiação, como câncer, leucemia e problemas neurológicos.

Guillermo Legaria - 19.abr.2016/AFP
Svetlana Aléksiévitch na Feira do Livro de Bogotá

Svetlana ganhou o Nobel de Literatura em 2015 por "seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e à coragem em nossa era".

Em seus livros, narra o que chama de "utopia do homem vermelho (comunista)" por meio de grandes acontecimentos na história soviética: a Segunda Guerra, o acidente de Chernobil, a ocupação no Afeganistão e o fim da União Soviética, sempre pelas vozes das pessoas comuns.

'CADA UM É UM ENIGMA'

"Escrevo sobre tudo o que a história omite, porque a história é arrogante e não interessa a ela o que está pensando o homem comum; para mim, interessa o que pensa cada um dos homens e mulheres que vivem a história."

Ou, como escreve: "Destino é a vida de um homem, história é a vida de todos nós. Quero narrar a história de forma a não perder de vista o destino de nenhum homem".

Para "Vozes", ela entrevistou mais de 500 pessoas –trabalhadores da central nuclear, bombeiros, cientistas, médicos, soldados, evacuados, moradores das zonas contaminadas. Conversava por quatro, cinco, até 20 horas com cada um deles.

"O mais importante era ter tudo gravado para não perder as características individuais de cada discurso", diz.

A mulher do bombeiro relata como cuidou do marido no leito de morte: "Eu levantava a mão dele e os ossos se moviam, dançavam, se separavam da carne. Saíam pela boca pedacinhos do pulmão, do fígado." Um soldado conta que, ao voltar para casa, queimou todas as roupas, menos o chapéu, que deu ao filho. Dois anos depois, o menino teve câncer no cérebro.

Svetlana levou 11 anos para escrever "Vozes de Tchernóbil." "É ingênuo pensar que o que faço é simples, que é apenas gravar e transcrever", diz. Ela observa e pensa, decide o quê e como perguntar, de que maneira ouvir, de que jeito escrever.

"Como os compositores, que encontram melodia em meio a uma cacofonia, extraio literatura do mundo, escuto todas as vozes e barulhos, fico atenta e seleciono."

"Vozes" é o primeiro livro da autora publicado no Brasil, traduzido do russo por Sonia Branco. Svetlana virá ao país para a Flip, entre 29 de junho a 3 de julho em Paraty.

"Sempre tive vontade de visitar o Brasil, talvez fosse melhor ir quando não esteja mais havendo uma revolução", diz, sobre à crise política.

Svetlana estudou jornalismo e trabalhou como repórter. Foi saudada como a primeira jornalista a ganhar o Nobel de Literatura e o prêmio foi celebrado como uma vindicação para a não ficção, há muito considerada "subliteratura".

Ela rejeita o rótulo de "jornalista". "Sou escritora. O jornalista só leva em conta a superfície da pessoa e do acontecimento; chega com uma lista de perguntas e um objetivo", diz. "Parto do pressuposto de que a pessoa é um enigma; preciso chegar com algo novo para receber algo novo, por isso compartilho com eles a minha visão de mundo."

Mas ela não compartilha nem escreve sobre sua experiência pessoal com Chernobil. A irmã morreu meses depois do acidente e Svetlana adotou a filha dela, de 4 anos. A escritora mudou seus pais para um apartamento mais longe da área contaminada, mas sua mãe ficou cega e teve um acidente vascular.

"É difícil saber o que foi causado pela radiação, mas tudo indica que há ligação", diz. "De qualquer maneira, é algo muito pessoal. Por que falar de mim se existem todas essas famílias que sofreram por causa do acidente?"

PERSEGUIÇÃO

Seus livros não são publicados em Belarus desde 1994 –são contrabandeados da Rússia. Ela é crítica ao governo autoritário de Alexander Lukashenko, no poder desde 1994, e às intervenções russas na Ucrânia e Síria. Por causa da perseguição política, morou muitos anos na Europa.

"Meu livro 'A Guerra não Tem Rosto de Mulher" [obra sobre mulheres que lutaram na Segunda Guerra, publicado em 1985] era considerado ofensivo porque minava a mensagem de heroísmo que o partido queria passar", diz

Vozes de Tchernóbil
Svetlana Alexievich
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"Um general me disse que leu e teve vontade de vomitar. Era isso mesmo que eu queria, que os generais lessem e tivessem vontade de vomitar."

Svetlana diz que qualquer regime autoritário "só se preocupa em preservar sua existência". "Em Belarus, bastava terem orientado a população a pôr gotas de iodo na água e teriam salvo muita gente", diz. "Mas ninguém disse nada, porque achavam que ia causar pânico e abalar o prestígio dos funcionários no partido."

Agora, ela escreve um livro sobre pessoas que se apaixonaram. "Não posso me imaginar indo a uma guerra ou a uma catástrofe de novo", diz.

Ela conta que foi à Ucrânia durante o conflito com a Rússia e chorava quando conversava com refugiados. "Cada pessoa tem uma capa protetora, a minha já se esgotou", diz. "Por isso agora escrevo sobre o amor, embora tampouco seja um tema fácil."


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