Folha de S. Paulo


Análise

Se os anos 70 foram de David Bowie, os 80 foram de Prince

Com as mortes de David Bowie e Prince, a música pop perdeu dois de seus artistas mais talentosos e transgressores. É simbólico que esses dois gênios tenham nos deixado em um intervalo tão curto: apesar das diferenças de geração e origem, havia semelhanças entre suas obras musicalmente ecléticas, sexualmente explícitas e ambíguas e na obsessão que demonstraram em construir suas carreiras de forma livre e independente.

Se os anos 1970 foram de Bowie, os 80 foram de Prince. Claro que Michael Jackson e Madonna venderam mais discos, mas os dez LPs que Prince lançou entre 1978 e 1988, incluindo "1999" (1982), "Purple Rain" (1984) e "Sign o' the Times" (1987) formam uma sequência imbatível no período.

A palavra "gênio" é usada sem muita parcimônia hoje em dia, mas é difícil não aplicá-la a Prince. Segundo relatos, aos 13 anos de idade já era um músico extraordinário. Aos 20, quando gravou o primeiro LP, "For You" (1978), tocou todos os 27 instrumentos presentes no disco. Aliás, gravou praticamente sozinho suas primeiras cinco obras.

Seu gosto era eclético, e seu trabalho sempre refletiu a abrangência de estilos que ouvia em casa, tendo pais músicos. Em quase 40 anos de carreira, Prince criou discos que misturavam soul, funk, rock, blues, hip-hop, psicodelia, hard rock e tecnopop.

Ele cantava como Michael Jackson, seduzia como Mick Jagger, se mexia no palco como James Brown e tocava guitarra como Jimi Hendrix. E ninguém, além dele, fez tudo isso de uma vez.

Sua excentricidade era tão marcante quanto seu talento. Em 1992, assinou um contrato de US$ 100 milhões com a Warner, só para se dizer "escravizado" pela gravadora e aparecer em público com a palavra "slave" (escravo) escrita no rosto; mudou de nome, escolhendo como nome artístico um símbolo; despediu um instrumentista por olhar para o relógio durante um ensaio, e mantinha músicos em disponibilidade ininterrupta para o caso de ter uma inspiração no meio da madrugada e precisar correr para o estúdio.

ENTREVISTA

Prince dava pouquíssimas entrevistas e, quando dava, eram sempre um acontecimento. Entrevistei-o uma vez, em meados dos anos 1990, época em que ele havia virado testemunha de Jeová e passava por uma fase de paranoia aguda, com mania de perseguição e fobia de aparecer em público.

A entrevista mais pareceu um encontro secreto com um espião da KGB: um carro me pegou em uma esquina de Nova York e rumou para um prédio, cujo endereço não tinha sido informado. Lá, uma assessora passou uma série de regras que deveriam ser seguidas à risca, sob pena de cancelarem a entrevista.

Eu deveria chamá-lo de "O Artista", não poderia levar gravador e bloco de anotações e não poderia apertar sua mão ("Só aperte a mão dele se ele apertar a sua primeiro"). A assessora avisou que "O Artista", se não gostasse de determinada pergunta, simplesmente iria embora.

"O Artista" apareceu vestido de verde e com sapatos pontiagudos, como um duende. Mas o papo foi estranhamente normal: falou do disco que divulgava, criticou as gravadoras e disse que não gostava de praticar instrumentos porque "atrapalhava sua inspiração".


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