Folha de S. Paulo


Neville d'Almeida volta ao cinema com retrato ácido da elite que vai à favela

Trailer do filme

"Sessenta e sete metros quadrados." Depois de andar de uma ponta a outra, Neville d'Almeida calcula o tamanho da laje no morro do Vidigal, favela na zona sul do Rio, onde rodou seu mais novo filme. "Olha que coisa linda", ele diz, encostado no parapeito. "Esse lugar é inesquecível."

Toda a ação de "A Frente Fria que a Chuva Traz", seu retorno ao cinema depois de quase duas décadas longe das telas, acontece ali. É uma frigideira suspensa sobre um amontoado de barracos e suas caixas d'água diante de uma vista deslumbrante do mar e da pedra da Gávea.

No longa, que estreia na semana que vem, a laje vira um oásis hedonista no meio do caos. Jovens endinheirados do asfalto alugam o espaço para fazer suas festinhas proibidas, cheias de sexo, álcool, pó e outras drogas sintéticas –uma moda que o cineasta chama de "'cafetinização' da favela".

Essas vielas não são um território estranho para ele. Neville, famoso por filmes como "A Dama do Lotação", de 1978, e "Mangue Bangue", clássico da contracultura rodado em 1971, sempre olhou para a favela, de modo real ou metafórico. Sua obra, aliás, usa esses espaços periféricos e a imagem que se faz deles para dissecar a noção de marginalidade.

"Na ditadura, meu interesse pela favela era o interesse pelos fodidos, os estigmatizados", diz o diretor. "Fiz 'Mangue Bangue' mostrando aquela melancolia, o não futuro, a desesperança. Hoje, a favela é invadida por esses branquinhos de merda para usar drogas, fazer sexo. O fato de serem belos e jovens não impede a brutalidade, a perversão."

Nesse sentido, "Frente Fria" surge como o retrato mais cru, talvez mais contundente, de um movimento de fetichização da favela pela cultura pop nas últimas décadas.

Adaptação da peça de teatro de mesmo nome escrita pelo dramaturgo Mário Bortolotto há 13 anos, o filme estreia depois de uma enxurrada de novelas, seriados e músicas que reenquadram a favela como território de liberdade e descontrole total.

Bruna Linzmeyer, estrela do filme, acaba de sair do ar como a Belisa da novela "A Regra do Jogo". Na TV, sua personagem era uma menina rica que sonhava em ser funkeira e fugia para o morro, espelhando o que a atriz entende como "fetiche pelo que cresce de modo desordenado".

Em "Frente Fria", ela é Amsterdã, garota de programa que se infiltra no círculo dos ricos e se prostitui para comprar drogas. É o elo entre a miséria e o luxo.

"Estamos falando de jovens da alta sociedade que alugam uma laje no meio da favela para fazer uma festa, mas não sabem lidar com o que está em volta deles, que é não só a favela, mas a solidão", diz Linzmeyer. "O filme é uma crítica a esses excessos e um retrato de um grande vazio. É a fuga pelas drogas porque elas parecem trazer o amor."

Ou a ilusão de amor calcada num êxtase passageiro. Nesse ponto, o deslocamento da cobertura no Leblon para a laje do Vidigal tem papel análogo ao entorpecimento. No fundo, tudo é uma fuga.

SEJA MARGINAL

Neville aqui parece atualizar para o século 21 a subida ao morro de Hélio Oiticica. Parceiro do cineasta numa série de trabalhos, o artista reinventou sua obra plástica depois do primeiro contato com a Mangueira. Longe do asfalto, ele disse ter redescoberto o corpo e se libertado das amarras e convenções burguesas.

Era um eco do pensamento do filósofo francês Guy Debord, que pregava desafiar os códigos da cidade oficial, exaltando espaços às suas margens –uma das raízes do lema "seja marginal, seja herói".

Numa exposição agora em cartaz na galeria Lelong, em Nova York, Neville revê essas ideias mostrando fotografias das "Cosmococas", série de instalações que fez com Oiticica. Mas "Frente Fria", distante no tempo, não tem heróis. Todos ali são perdedores.

E o foco se volta para a língua falada por eles. Sem mostrar quase nada de sexo ou mesmo violência, os embates do filme são explosões verborrágicas. Longe da assepsia das novelas e comédias que dominam o cinema atual do país, o texto do filme, fiel ao original dos palcos, não evita palavrões e descrições ginecológicas de trepadas e gozadas.

"É essa linguagem agressiva, pobre e nojenta da sociedade atual, dessas pessoas de butique devastadas pela burrice e pela imbecilidade. Podia fazer uma suruba na laje, mas achei melhor todo mundo fingindo que é normal, falando muito de sexo e fazendo pouco", diz Neville. "Tudo está centrado na palavra. É um filme desbocado, que busca transgredir."

Na base dessa transgressão, está seu ataque à elite, assunto explosivo em tempos de Lava Jato e impeachment. "Existe uma busca por falsos valores", diz o cineasta, no morro do Vidigal. "A coisa que mais cresce no país é favela. Ninguém vem aqui arrumar, só tomar. Nada mudou aqui."


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