Folha de S. Paulo


crítica

Coleção de ensaios de Umberto Eco se mantém relevante

"A Definição da Arte", último lançamento no Brasil de Umberto Eco (1932-2016), é surpreendente.

A publicação poderia parecer uma boa oportunidade editorial, dado o falecimento do autor. Na Itália, lançou-se "Pepe Satàn Aleppe" apenas uma semana após seu óbito e as vendas foram espetaculares.

Ademais, o livro reúne ensaios escritos entre 1955 e 1963, constituindo uma autêntica arqueologia do autor de best-sellers acadêmicos –"Obra aberta" (1962); "Apocalípticos e Integrados" (1964)– e ficcionais –"O Nome da Rosa" (1980); "O Pêndulo de Foucault" (1988).

Este livro seria destinado exclusivamente ao estudioso de Eco?

Eis a surpresa: "A Definição da Arte" proporciona uma reflexão relevante para o cenário contemporâneo. Embora os artigos coligidos sejam de recorte acadêmico, é possível consultá-los como se fossem peças de um quebra-cabeça ficcional.

Os ensaios elegem um rival poderoso, abraçam um mestre e sua teoria e, sobretudo, propõem uma experiência de pensamento que segue plenamente atual.

O adversário emoldura o volume, pois é nomeado no primeiro ensaio, "A estética da formatividade e o conceito de interpretação" (1955), e retomado no último artigo, "Um balanço metodológico" (1963).

A fundação de uma nova estética demandava o tradicional parricídio. Era preciso superar o idealismo das concepções de Benedetto Croce.

No texto inicial se reconhece: "Um discurso sobre problemas estéticos não pode deixar de tomar como ponto de partida aquela que foi a experiência crociana". No escrito posterior, o tom se torna mais belicoso: "Formei-me culturalmente no pós-guerra, num período, portanto, em que muitos jovens intelectuais italianos estavam reagindo contra a 'ditadura' cultural crociana".

Na "Nota introdutória", Eco atou as pontas de sua formação, encarecendo o nome de seu professor: "Não por acaso que o volume começa com um exame da estética de Luigi Pareyson: na realidade todos os estudos deste volume recebem a influência do clima de pesquisa em que cresceram, na Escola de Estética de Turim".

Pareyson foi professor tanto de Umberto Eco quanto de Gianni Vattimo, e desenvolveu uma abordagem que estimulou a superação do idealismo crociano: a estética da formatividade.

Eco começou sua jornada radicalizando os passos do mestre. A estética desenvolvida por Pareyson afastou-se do privilégio concedido à obra de arte, vista como uma forma "acabada".

Pelo contrário, ele se concentrou no exame do ato de formar, destacando a centralidade da noção de "forma formante", isto é, da ação criadora que ocorre tanto na produção como na recepção. Esse ponto foi decisivo, pois Eco esticou a corda ao máximo, propondo um conceito chave para o entendimento da arte contemporânea.

Recorde-se o ensaio "O problema da obra aberta" (1958), no qual se definiu a ideia: "Obras que se apresentam ao fruidor não completamente produzidas ou acabadas". Vale dizer, os papéis tradicionais de escritor e de artista são substituídos pelas funções de coautor e de "fruidor" participante.

A Definição Da Arte
Umberto Eco
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Imagine-se um encontro-explosão: o teórico italiano, em diálogo com Hélio Oiticica e Lygia Clark, dedicaria um estudo aos parangolés e aos bichos!

Essa reunião fictícia esclarece a experiência de pensamento que segue atual, mesmo urgente: uma abertura à arte do aqui e agora. Recusá-la significa ignorar que "fatos tecnológicos novos modificam radicalmente a imagem do homem".

Umberto Eco ensinou a manter os olhos livres e bem abertos para o contemporâneo. Aceitemos o desafio.

A DEFINIÇÃO DA ARTE
AUTOR: Umberto Eco
EDITORA: Record
QUANTO: R$ 39,90 (280 págs.)

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é professor de literatura comparada da UERJ


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