Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Documentário recria imaginário artístico do pintor Cícero Dias

"Eu vi o mundo"¦ ele começava no Recife." A frase, título de uma importante obra, hoje incompleta, de Cícero Dias e que também se lê como epitáfio no túmulo do artista pernambucano num cemitério parisiense, orienta o mais recente documentário de Vladimir Carvalho.

"Cícero Dias, o Compadre de Picasso" segue, como o formidável "O Engenho de Zé Lins" (2006), o fio condutor da biografia e o conecta a outras linhas de força.

Na superfície, trata-se de um documentário sem inovações formais, concentrado na trajetória de Cícero Dias, cuja obra perpassa o modernismo brasileiro e o europeu.

O depoimento de parentes e contemporâneos soma-se a esclarecedoras análises de críticos que apontam a singularidade estética das diversas fases do artista.

Divulgação
Cicero Dias foto filme. Foto Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Cícero Dias e Pablo Picasso em cena do documentário

O material de arquivo com entrevistas de Dias em épocas distintas complementa a construção do personagem.

Por fim, a apresentação de alguns de seus trabalhos fundamentais ilustra aspectos que a maioria desconhece.

Carvalho adota a linearidade cronológica afim de permitir que o público siga com interesse e capte a progressão, assim como os desvios, situe a obra no contexto histórico e apreenda os embates estéticos e éticos vividos por Dias.

Sob essa estrutura, digamos, "objetiva" do discurso do filme, Carvalho distribui outra camada, "interna", "mental". Para alcançá-la, ele ultrapassa o texto para sondar, por meio de imagens, o universo onde Dias nasceu e que inspirou parte da obra.

Na primeira etapa, trata-se de recriar a origem do imaginário artístico de Dias, os elementos locais, as experiências da infância no engenho Jundiá, a visão libidinosa da carne feminina, as cores quentes desse mundo que ele fixou em aquarelas.

Um segundo mergulho é feito quando o filme recompõe a interação de Dias com a matriz da vanguarda europeia, em Paris, o diálogo com os surrealistas, o convívio com Picasso, padrinho de sua filha, o modo como adota o vocabulário cosmopolita sem abandonar o regionalismo nos temas.

Outra camada ressurge na reconstituição de uma exposição de Dias em Recife, num de seus retornos, quando as obras mais abstratas provocam uma reação conservadora que enxerga na novidade uma traição à inspiração local.

Com esses desvios, Carvalho foge à rigidez do documentário oficial, das limitações impostas pelo didatismo e oferece, como no longa sobre José Lins do Rego, um retrato de um lugar onde se concentram as contradições brasileiras entre tradição e modernidade.

Assim, como no grandioso painel pintado por Dias, descobrimos onde o mundo começa e não termina.

CÍCERO DIAS, O COMPADRE DE PICASSO
DIREÇÃO Vladimir Carvalho
PRODUÇÃO Brasil, 2016 (14 anos)
QUANDO hoje, 13h, 14 anos
ONDE Cinearte


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