Folha de S. Paulo


Farsa musical de Zeca Baleiro evoca vícios morais da obra rodriguiana

A diretora Debora Dubois conheceu a obra de Nelson Rodrigues aos 16 anos. "A primeira sensação não foi das melhores", lembra. Aquela era "uma idade em que você, que vem de uma família, digamos, 'padrão', estranha esse subterrâneo em que ele mexe".

Hoje, Debora está confortável no submundo de vícios universais retratado pelo dramaturgo: o tesão pela pessoa proibida, o pudor fajuto imposto pela sociedade, o cinismo necessário até nas mínimas coisas. Ela dirige "A Paixão Segundo Nelson", farsa musical em cartaz em São Paulo.

Concebida em parceria com Zeca Baleiro, que ficou responsável pela adaptação e pelas canções, a peça foge dos textos para teatro e é uma colagem de crônicas do dramaturgo. Há nela excertos de "A Vida como Ela É" (série de textos publicados no jornal "Última Hora" nos anos 1950 e 1960), "A Cabra Vadia" (crônicas de 1968 veiculados em "O Globo") e "À Sombra das Chuteiras Imortais" (crônicas esportivas publicadas na revista "Manchete Esportiva" e em "O Globo", entre 1955 e 1970).

Divulgação
Cena de
Jarbas Homem de Mello e Helena Ranaldi em cena de 'A Paixão Segundo Nelson'

A dupla teve ideia de montar Nelson em 2012, ano em que se celebrou o centenário de nascimento do escritor. "Mas ela [Debora] disse que não gostaria de fazer nenhum dos textos teatrais –apesar de achá-los geniais, já foram muito remontados", diz Zeca.

Debora acredita que um nome de peso como Nelson carrega consigo a sensação de vir com um manual de instruções. "E agora eu percebi que a gente não precisa usar o manual", diz. Assim, sem um "manual", abdicaram do Nelson dramaturgo e partiram para o Nelson cronista.

Um lado do palco é tomado pelo Filósofo (Rui Rezende), personagem claramente inspirado em Nelson. Diante de uma máquina de escrever, dispara frases desconcertantes –por exemplo, decreta: "todo canalha é magro".

Do outro lado está a conselheira sentimental Myrna (Roberto Cordovani), heterônimo adotado por Nelson nos anos 1940 para responder a cartas de leitoras que procuravam o jornal "Diário da Noite" em busca de soluções para questões amorosas –questões às quais Myrna respondia com acidez, como quando decretou ser impossível "amar e ser feliz ao mesmo tempo".

Em uma rádio fictícia —"A Voz do Rio"—, os dois narram histórias do subúrbio do Rio de Janeiro –ou sua versão mais ordinária e vadia.

Uma delas é sobre o rapaz (Marcos Lanza) que, na lua de mel, abandona a mulher (Vanessa Gerbelli) e foge com a cunhada (Giselle Lima).

Outra é sobre o homem (Jarbas Homem de Mello) que, no leito de morte, tinha como último desejo ouvir de sua pudica e irretocável noiva (Helena Ranaldi) um palavrão que ruborizaria a tradicional família brasileira da metade do século 20.

E talvez até a tradicional família brasileira de hoje.


Endereço da página: