Folha de S. Paulo


Acusada de censura, Editora 34 diz que recusou livro por motivos literários

Zanone Fraissat/Folhapress
O escritor Antonio Risério em mesa da Flip 2015

A ideia era publicar o romance em junho, pela editora 34 -onde o baiano Antonio Risério tem lançado seus livros no últimos anos. Mas apareceu uma pedra no meio do caminho. A editora paulistana voltou atrás. E recebeu a acusação de censura do autor.

O motivo da celeuma é o oitavo capítulo de "Que Você é Esse?" Nele, Daniel Kertzman, protagonista, aparece atuando no marketing político -e o romance faz referências veladas às campanhas eleitorais, nas quais Risério trabalhou como diretor de conteúdo de 2002 até 2010.

A notícia foi antecipada pela coluna de Mônica Bergamo, na Folha, nesta quarta -feira (30). A editora Record já anunciou que dará "abrigo editorial" ao autor.

A 34 avisou Risério da decisão em uma mensagem que dizia:

"Em face do acirramento da crise, com a turma pró-impeachment apelando para medidas ilegais e até criminosas para levar a cabo (...) a derrubada do atual governo (...), não nos sentiríamos bem engrossando esse caldo. Num momento em que o bom senso e a reflexão crítica estão indo por água abaixo, o seu livro poderia ser instrumentalizado nesse sentido."

No começo do e-mail, a editora aponta também o que considera problemas literários do romance.

"Evidente que isso é uma censura. 'Não vamos publicar seu livro porque ele vai prejudicar Dilma e o PT'. Isso é fruto de um sectarismo desses meses. Eu já vivi muitas crises políticas na minha vida, mas esse é um momento de sectarismo que eu nunca vi antes", diz Risério.

Em nota, a editora diz "se orgulhar" das obras de Risério que publicou, mas afirma que "constatou vários problemas de ordem literária", como "falta de tensão na voz narrativa, digressões excessivas por parte do narrador, mistura (literariamente contraproducente) das vozes do narrador e dos personagens", entre outros.

A casa afirma ainda que as passagens sobre o marketing político "soavam mais como um desabafo pessoal do que uma construção literária de peso". Por fim, a 34 diz achar "descabido" o uso do termo "censura".

Risério é um nome conhecido da esquerda. Além de trabalhar nas campanhas do PT -e depois chegar a escrever os discursos da presidente Dilma Rousseff-, ele foi assessor de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Hoje, rompido com a legenda, apoia a Rede.

ROMANCE DE GERAÇÃO

"'Que Você é Esse?' é uma gíria baiana que parece Heidegger. Você usa quando está jogando bola e aquele seu amigo lhe dá uma porrada. Expressa meu estranhamento com tudo", diz Risério.

O autor vê seu romance, cuja narrativa começa nos anos 1960 e chega até hoje, como a história de uma geração. A obra começa contando a trajetória da família do protagonista e segue seu caminho ao longo das décadas -momento em que viraria hippie, depois comunista e por fim vai trabalhar em campanhas eleitorais.

"O capítulo oitavo trata desses jovens que entraram no marketing achando que iam botar a esquerda no poder pelo voto. Depois, foram se decepcionando com o PT traindo a ética, se convertendo num antro de larápios", afirma Risério.

O escritor destaca, porém, que o livro não é sobre isso -e que o assunto é tratado em apenas um capítulo. "O livro não fala em impeachment. É um livro à esquerda do PT", afirma.

Sobre sua crítica às campanhas, Risério -que é a favor do financiamento público- diz ver nos marqueteiros uma mistura de Goebbels, ministro da propaganda nazista, com Odorico Paraguaçu, prefeito da novela "O Bem-Amado" obcecado por inaugurar o cemitério da cidade.

"Acho que é narcisismo demais um editor achar que um livro que ele publica vai derrubar um presidente. Isso pode acontecer, mas só em casos muito excepcionais na História", conclui o autor.

LEIA A ÍNTEGRA DA NOTA DA EDITORA 34

A Editora 34 é apartidária e contra qualquer forma de censura. Entendemos que a relação entre autor e editora é pessoal e privada, e por isso não costumamos divulgar, em respeito aos autores que nos procuram, os motivos de recusa de um original. Foi o que levou a não nos manifestarmos na nota publicada na coluna de Mônica Bergamo do dia 30/3.

Diante da controvérsia gerada, nos vemos na obrigação de esclarecer alguns fatos.

A Editora 34 já publicou três livros de ensaios de Antonio Risério - A utopia brasileira e os movimentos negros (2007), A cidade no Brasil (2012) e Mulher, casa e cidade (2015) -, dos quais muito se orgulha. Acolheu o romance "Que você é esse?", com publicação prevista para este ano, mas constatou vários problemas de ordem literária, tais como: falta de tensão na voz narrativa, digressões excessivas por parte do narrador, mistura (literariamente contraproducente) das vozes do narrador e dos personagens, bem como dos personagens entre si. A primeira parte da carta a ele endereçada dizia respeito exatamente a esses aspectos - e fazia sugestões nesse sentido.

Ciente de que Risério trabalhou por muitos anos como assessor de marketing político em campanhas eleitorais e de que certas passagens do livro soavam mais como um desabafo pessoal do que uma construção literária de peso, a Editora 34 manifestou seu desconforto com a possível instrumentalização dessas passagens. É um trecho desta segunda parte da carta que a Folha transcreveu na edição de ontem.

Por isso nos parece totalmente descabido o termo "censura" utilizado na nota. Trata-se muito simplesmente do direito de uma editora de declinar de um original que considera insatisfatório, mesmo quando admira seu autor por outras obras e outros motivos, como é o caso de Risério.


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