Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Bastide se debruça sobre o sonho, o transe e a loucura em ensaios

O sonho desconserta, do transe se desconfia, a loucura amedronta: três processos psíquicos com os quais o homem ainda convive sem muito entender, e às vezes sem aceitar, como lixo que a vida comum faz transbordar sem sentido.

A psicanálise e outras ciências, ao tomar como objeto essas três manifestações não raro situadas nos limites da morte, nas sombras do que somos e fazemos quando "acordados" ou "conscientes", procuraram entender, cada uma a seu modo, o que somos a partir daquilo que aparentemente nos nega. Para essas ciências, sonho, transe e loucura podem ser explicados pela história do indivíduo.

Ao interpretar o sentido social dos resquícios de antigas civilizações, sobretudo africanas, que encontrou ao estudar a formação do Brasil, o sociólogo Roger Bastide (1898-1974) de certo modo rompeu com as interpretações científicas correntes formulando uma instigante compreensão sociológica desses processos.

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ORG XMIT: 342101_0.tif O antropólogo francês Roger Bastide. (Foto: AFP/France Presse)
Roger Bastide, membro da missão que instituiu a USP

Para entendê-los, ele postulava o sonho, o transe e a loucura como canais de comunicação entre o mundo profano e o universo mítico, sobrenatural. A história do indivíduo não basta. É preciso entender o sentido de ser e agir no cotidiano à luz da mitologia do grupo, ou seja, do mito ancestral. Desobstrui-se, dessa forma, a passagem simbólica entre o individual e o coletivo.

Em populações africanas e afro-brasileiras e nas instituições por essas aqui constituídas como meio de inserção numa sociedade branca, adversa, de origem ocidental e religião católica, Roger Bastide reconheceu o sonho, o transe e a loucura como mecanismos que ligam a vida cotidiana trivial do homem comum ao universo mitológico e atemporal das divindades.

Não por acaso, na cultura híbrida desse Brasil negro moldado pela escravidão, o sonho pode ser decifrado pelo sacerdote como mensagem divina, orientação oracular para a vida comunitária. O transe é o artifício pelo qual a própria divindade se revela num corpo ritualmente preparado para se apresentar diante da comunidade. A loucura sobrevém quando as pontes entre esses mundos em permanente comunicação sofrem algum tipo de bloqueio, separando os humanos de suas origens sagradas.

SER LOUCO

A restauração do equilíbrio rompido, mediada pelo sacerdote, só pode ser alcançada com a renovação dos pactos religiosos negligenciados referidos à comunidade: ser louco é situar-se fora das referências coletivas.

Em nossa sociedade a própria visão de mundo está nas mãos de profissionais a serviço de grupos de pressão ou de um Estado separado da "comunidade". Esse novo universo que nos é imposto enfraquece nosso interesse pela vida coletiva, pela família: o homem acha-se reduzido a si mesmo, explica Bastide.

No mundo de hoje, o homem e a mulher estão submetidos à condição de puro indivíduo, ensimesmado, sozinho, sem poder se apoiar numa gramática social que lhe permita a leitura de sua posição entre os outros, que dê um sentido social à sua vida.

Publicado na França em 1972 e somente agora no Brasil, com preciosa tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura, "O Sonho, o Transe e a Loucura" reúne ensaios publicados entre as décadas de 1930 e 1970 por Bastide, membro da missão francesa que instituiu a Universidade de São Paulo e um dos pais dos estudos afro-brasileiros.

O Sonho, o Transe e a Loucura
Roger Bastide
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Sua obra foi decisiva para dar ao candomblé o status de religião, respeitável como qualquer outra, numa época em que as religiões afro-brasileiras eram vistas como desprezível magia de negros.

REGINALDO PRANDI é professor sênior do Departamento de Sociologia da USP e autor de "Os Mortos e os Vivos" (ed. Três Estrelas)

O SONHO, O TRANSE E A LOUCURA
AUTOR Roger Bastide
EDITORA Três Estrelas
TRADUÇÃO Carlos Eugênio Marcondes de Moura
QUANTO R$ 69,90 (392 págs.)


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