Folha de S. Paulo


DEPOIMENTO

'Vesti camisa que não é minha', diz atriz de peça interrompida em BH

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Durante a apresentação do musical "Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 minutos" em Belo Horizonte, o ator e diretor Claudio Botelho introduziu um "caco" (um improviso, no jargão teatral) na metade da peça, que retrata uma trupe teatral e usa músicas de Chico Buarque.

A cena falava de uma cidade pequena em que ninguém havia ido ao teatro em certa noite.

"Era a noite do último capítulo da novela das oito. Era também a noite em que um ladrão ex-presidente talvez tenha sido preso. Ou uma presidente ladra recebeu o impeachment?", disse Botelho no "caco".

Parte da plateia reagiu dizendo "não vai ter golpe", outra parte defendeu o diretor, mas o espetáculo acabou sendo interrompido.

Mais tarde, Chico Buarque declarou que não autorizará Botelho a usar suas canções em trabalhos futuros.

A atriz Soraya Ravenle faz parte do elenco da peça e presenciou a cena. No camarim, discutiu com o diretor sobre a interrupção do espetáculo. O áudio foi gravado e divulgado nas redes sociais.

Leia abaixo o depoimento que ela deu à Folha.

*

Foi uma avalanche pesada!

Fui acarinhada com milhares de manifestações de muito afeto e admiração após um episódio dramático e de um vazamento de um áudio.

Mas de que se trata isso tudo? Que fala está por trás de tantos elogios e comoção? Essa mobilização veio, na verdade, de um lugar de ausência que todos sentimos atualmente: a falta de diálogo. De ouvir e de ser ouvido. De, no auge de uma crise, parar para conversar.

Queria, naquela hora, sentar, fechar o camarim e abrir o coração. Chorar, se preciso. Mas está difícil gastar nosso tempo trocando ideias presencialmente, construindo pontes com o outro.

O mais fácil é "binarizar". É se satisfazer com reflexões rápidas e superficiais!

Um amigo postou uma foto de um muro pichado com a palavra "desbinarizar". É um dos meus lemas atuais.

Coragem para mim hoje é aguentar e enfrentar a complexidade das relações humanas.

Daniel Marenco - 6.jan.2013/Folhapress
RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 06-01-2013, 20h00: Ensaio do musical
Soraya Ravenle e Claudio Botelho em ensaio de "Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 minutos"

Quando alguém erra, é tentador para o ego despejar todas as nossas raivas e frustrações nessa criatura. Para o ego, é uma boa razão para perder a razão.

Por outro lado: errar é humano.

Quando minha filha era criança, dizia para ela que existem quatro palavras mágicas: obrigada, por favor, com licença e desculpe!.

Nesta última está embutido o reconhecimento de um erro. Esse gesto é transformador! Uso-o sem pudor.

Não penso que Chico Buarque esteja certo ou errado. Ele exerce o seu direito de escolha.

Não são comparáveis absolutamente os episódios acontecidos em Belo Horizonte com o espetáculo "Roda Viva". Infelizmente, no "Roda Viva", na verdade quem parou o espetáculo não foi a plateia.

Há muitos tipos de vaias, de naturezas distintas. Mas, sim, o público tem o direito de vaiar assim como aplaudir. Se isso é justo ou não, depende do contexto.

Do muito que foi postado, destaco uma manifestação que me representa: o ator é um rei. Mas é também um mendigo, uma puta, um palhaço, um bandido, um travesti, o príncipe da Dinamarca.

O ator é livre para ser tudo o que quiser. Mas o ator que é apenas um rei não é nada.

Nós estávamos num musical, não era uma peça política, um stand-up ou um monólogo. Eu tive que vestir uma camisa que não é minha.

A esquerda ou a direita não são compostas por uma massa uniforme de pessoas com os mesmos pensamentos.

De fato, me sinto tão ignorante!

São tantas as dúvidas sobre as fontes que denunciam, acusam ou defendem que o que tenho feito é ler pessoas que são para mim referência de pensamento e lucidez.

Converso com amigos, ouço historiadores, a manicure, sociólogos, políticos, taxistas e me certifico de que cada um tem muitas razões para achar o que acha.

Mas todos, absolutamente todos, clamam pelo fim do tipo de política corrupta, por boas condições sociais para todos.

Então, eu, que não levanto a bandeira de nenhum partido, que sou um poço de dúvidas, me vi num palco transformado em palanque. Minha reação foi tentar continuar a qualquer preço.

Quando finalmente ligaram meu microfone e pude me dirigir à plateia, gritei: "Vamos acalmar, voltem, vamos cantar! Viva a democracia, viva a música, viva Chico Buarque!".

Cantei "Não Sonho Mais" por cima das vaias e dos gritos na esperança de que meu canto acalmasse os ânimos.

O público não parou de protestar, de se manifestar. Compreendo. Estamos em carne viva, à flor da pele. Eu também estou.

Por fim, nunca presenciei nenhuma atitude racista por parte dele [o diretor]. Muito pelo contrário.

Trata com polidez e generosidade toda a equipe e seus contratados. Li de uma juíza e concordo: "Não existe violência errada ou certa quando falamos de direitos humanos. Não é legitimo expor a intimidade de alguém por meio de gravações ilegais, nem por meio de divulgação de conversa gravada no camarim".

Não sei quem gravou. Acho uma atitude perversa, covarde. É alguém querendo ver o circo pegar fogo. Condeno esse tipo de atitude, que só semeia discórdia e promove escândalos.

Sinto muito pelo Claudio, pessoa por quem nutro profunda admiração e afeto.


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