Folha de S. Paulo


Felipe Hirsch investiga a literatura latino-americana em nova peça

Enquanto escarafunchava autores "malditos" da literatura latino-americana, Felipe Hirsch diz ter se reencontrado com seu anarquismo juvenil.

"Não é um pensamento anarquista na prática, mas um sentimento que jovens carregam, de rejeição aos políticos, sejam de governo ou oposição", observa o diretor.

Como a abertura de "A Tragédia Latino-Americana", que Hirsch estreia nesta quinta (17) após apresentações na MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Nos primeiros minutos das quatro horas de peça, há uma espécie de "cabaré macabro": os 11 atores, entre os quais Julia Lemmertz, Camila Márdila e Guilherme Weber, saúdam os "ilustres convidados", nomeando políticos de Antônio Carlos Magalhães ao vice-presidente Michel Temer.

"Tragédia" é um desdobramento de "Puzzle" (2013-2015), série de quatro peças em que Hirsch –e o grupo de atores e criadores que ganhou a alcunha de Ultralíricos– investigava as contradições da sociedade brasileira a partir da literatura nacional.

Também é um projeto em partes –a segunda e última, "A Comédia Latino-Americana", deve estrear em setembro no Festival Mirada, em Santos, no litoral paulista.

Aqui, porém, o escopo se expande para a América Latina, em especial escritores considerados "malditos", como o cubano Virgílio Piñera, o argentino Salvador Benesdra e o mexicano Gerardo Arana.

São nomes "reconhecidos, mas não conhecidos do grande público", diz Hirsch, que calcula ter lido cerca de 180 autores durante o processo.

Para o diretor, esta é uma peça mais sensorial e sentimental. "'Puzzle' tinha uma ironia, era mais agressiva. Esta é mais amorosa, porque não tem uma leitura irônica", avalia. "Mas amorosa no limite que dá para ser, porque a gente vive num momento de reação e de ânimos aflorados."

BARREIRA

Como em "Puzzle", a nova montagem se estrutura em uma série de quadros soltos baseados nos textos literários. As cenas, contudo, não são fixas, podendo mudar de ordem a cada apresentação.

Os escritos são interpretados na íntegra, adaptados, traduzidos ou falados no idioma original –há cenas em espanhol (legendadas), boa parte interpretada pelo argentino Javier Drolas e pela chilena Manuela Martelli.

É uma forma de mostrar as barreiras linguísticas do continente. "Eu mesmo comecei a ler esses textos latinos em inglês", conta Hirsch. "Hoje não admito mais isso."

Também se faz mais presente a música, que acompanha todas as cenas –algumas cantadas pelo elenco. Compostas por Arthur de Faria, são tocadas por ele e por outros seis músicos na lateral do palco.

Buscou-se para as canções um tom farrista, como o do cabaré que abre a apresentação, e um certo improviso. Mas não se exigiu dos atores muita técnica no cantar.

"Cabaré está ligado a pessoas que cantam mal bem. Eu amo pessoas que conseguem cantar mal, grandes atores capazes de passar por cima da técnica e me emocionar."

Outro som latente é o dos 98 blocos de isopor que formam o cenário de Daniela Thomas e Felipe Tassara.

A cada cena, os atores movimentam esses tijolos, em processos de construção e destruição constantes de formas. Uma alusão às cidades latino-americanas, "novas e ao mesmo tempo já tão destruídas", afirma o encenador.

Na movimentação, desgasta-se o próprio material, que deixa rastros de bolinhas brancas, como se houvera nevado no pretume do palco.

Este, por sinal, é deixado à mostra: vê-se o seu fundo, suas coxias, suas estruturas de metal, luzes e cordas. Algumas cenas são feitas na lateral do tablado, direcionando o olhar do espectador.

"Trabalhamos com a dificuldade", diz Hirsch. "Dependendo de onde o público se senta, dá para ver melhor ou pior uma cena ou a banda. É um lugar misterioso."

A TRAGÉDIA LATINO-AMERICANA
QUANDO qui. a sáb., às 19h30, dom., às 18h; até 17/4
ONDE Sesc Consolação, r. Dr. Vila Nova, 245, tel. (11) 3234-3000
QUANTO R$ 12 a R$ 40
CLASSIFICAÇÃO 18 anos

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TRAGÉDIAS
Textos da peça

"La Poesía Latino-Americana", de Roberto Bolaño (Chile)

"Três Tristes Tigres", de Guillermo Cabrera Infante (Cuba)

"Filosofia" e "Visto Bengalas, Bebês e Diamantes", de Gerardo Arana (México)

"Escola Primária", de Marcelo Quintanilha (Brasil)

"Carta Número 2", de Reinaldo Moraes (Brasil)

"El Traductor", de Salvador Benesdra (Argentina)

"O Terreno de uma Polegada Quadrada", de Samuel Rawet (Brasil)

"Tomai e Comei, Isto é o Meu Corpo", "Era 28 de Novembro, Aniversário de Marilena do Nascimento", "Dentro de uma Caixa de Sandálias Azaléia, Jazia um Menino", de Dôra Limeira (Brasil)

"Te Vi na TV", de Glauco Mattoso (Brasil)

"Pequeña Canción Trágica", de J. R. Wilcock (Argentina)

"Dupla e Única Mulher", de Pablo Palacio (Equador)

"A Carne", de Virgílio Piñera (Cuba)

"A Nova Califórnia", de Lima Barreto (Brasil)

"Agua Podrida", de Leo Maslíah (Uruguai)


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