Folha de S. Paulo


O brasileiro que recriou o TIE Fighter para 'Star Wars: O Despertar da Força'

The Art of Star Wars: The Force Awakens by Phil Szostak © Abrams Books, 2015

Em outubro de 2013, o designer brasileiro Fausto de Martini foi convocado para uma missão secreta. Nem mesmo seus amigos mais próximos sabiam o que ele fazia sentado todos os dias diante do computador. Quando alguém lhe perguntava, sua resposta tinha apenas duas palavras: Star Wars. E mais nada. Quem quisesse saber qualquer detalhe sobre seu envolvimento com o novo filme da série teria de esperar até a estreia, mais de dois anos depois. Nem mesmo a mãe de Fausto tinha ideia de qual era seu papel na produção. Enquanto fãs de "Star Wars" não sabiam sequer o nome do sétimo longa-metragem da saga, Fausto trabalhava na equipe de J. J. Abrams para definir o visual de um dos grandes símbolos de "Star Wars": o TIE fighter, a nave de guerra pilotada pelos exércitos dos vilões da saga desde 1977.

Durante sete meses, uma das naves mais icônicas da história do cinema estava sob a responsabilidade de Fausto. Foi na tela de seu computador que o TIE fighter mudou gradualmente, por dentro e por fora, até chegar ao modelo que é visto no filme. O trabalho durou até maio de 2014. Ainda faltava um ano e meio para a data de lançamento do filme, mas Fausto já havia cumprido seu papel em "Star Wars". Só lhe restava esperar a estreia —em silêncio, é claro— e embarcar em sua próxima missão secreta.

Profissionais como Fausto são desconhecidos para o público, mas exercem um papel crucial em qualquer grande produção de ficção científica. Ele faz parte da equipe de "concept artists", os ilustradores encarregados de concretizar a imaginação dos roteiristas e diretores. Embora o roteiro do filme tenha descrições, cabe a Fausto e a seus colegas a tarefa de transformá-las em imagens e protótipos. Suas criações, avaliadas com rigor pelos produtores e pelo diretor, definem todo o visual do filme. "Trabalhamos diretamente com o diretor do filme. O J. J. Abrams era um cara bastante ocupado, mas mesmo assim participei de quatro ou cinco reuniões com ele para discutir os designs."

Fausto Martini
Fausto, prazer
Fausto, prazer

Uma produção como "Star Wars: Episódio 7 - O Despertar da Força" tem dezenas de "concept artists". Todos começam a pensar no filme pelo menos um ano antes do início das filmagens. Eles trabalham em equipes diferentes, cada uma com uma especialidade. Um time só desenha roupas de personagens. Outro dá cara e corpo às inúmeras criaturas alienígenas que povoam o universo da saga. Dependendo da experiência, um ilustrador é escolhido para fazer um aspecto específico do filme.

A especialidade de Fausto é criar máquinas. Ele coleciona referências de mecânica e aeronáutica, lê livros de engenharia e é apaixonado sobre documentários sobre como a tecnologia funciona. Sua obsessão é fazer veículos fictícios que tenham um comportamento realista. "É importante pensar em detalhes como a posição do motor, o funcionamento da propulsão. O público tem que acreditar que aquela máquina poderia funcionar de verdade", diz Fausto.

Em "Star Wars", os conhecimentos de Fausto foram aplicados para o bem e para o mal. Ele desenhou alguns containers da nave de Han Solo e refinou o modelo 3D do X-Wing, com base num trabalho feito pelo designer Ryan Church. Mas a maior parte do trabalho de Fausto foi para o lado negro da Força. "Meu trabalho mais autoral foi o TIE fighter novo. Desenhei todo o interior da nave e também fiz alterações cosméticas na parte exterior", diz Fausto. "Eu não gosto de dizer que fiz o design do TIE fighter, porque o TIE fighter já existia. Mas eu fiz as mudanças que atualizaram o visual."

The Art of Star Wars: The Force Awakens by Phil Szostak © Abrams Books, 2015
A parte interna do TIE fighter, palco de cenas importantes no início do filme
A parte interna do TIE fighter, palco de cenas importantes no início do filme

Como muitos dos artistas que trabalham ao seu lado nos filmes, Fausto aprendeu a fazer ilustrações 3D por conta própria. Filho de uma pintora, ele gostava de desenhar e criar maquetes desde criança, mas demorou muito para descobrir que poderia fazer da arte uma profissão. Prestou vestibular para publicidade e trabalhou por algum tempo numa revista de games testando demos e escrevendo sobre jogos. Foi nessa época que teve o primeiro contato com StarCraft, uma de suas grandes paixões. O visual do jogo o impressionava. Na mesma revista, um designer o apresentou às ilustrações em 3D pela primeira vez. "Vi uns trabalhos dele em 3D e perguntei como ele tinha feito isso. Ele disse que fazia em casa. Eu não tinha a menor ideia de que isso era possível. Achava que só grandes estúdios podiam fazer trabalhos desse tipo. Foi aí que ele me apresentou os programas caseiros de ilustração 3D", diz Fausto.

Sua primeira ideia foi fazer uma parceria com o colega designer. Propôs que os dois criassem um jogo juntos. A divisão de trabalhos não era lá muito justa: Fausto desenharia as naves e seu companheiro de trabalho ficaria encarregado de modelá-las em 3D e programar todo o jogo. O amigo deu para trás. "Não tenho tempo para fazer tudo isso. Por que você não aprende a mexer com 3D e faz tudo sozinho?", disse. Para muitos, esse seria o fim do projeto e da curiosidade pelo design. Mas Fausto aceitou o desafio do amigo e decidiu tentar a sorte como ilustrador 3D. "Fiz um upgrade no meu computador, comecei a brincar e aí ficou muito claro que era aquilo o que eu queria para minha vida. Comprei um livro, comecei a fazer uns exercícios e em uma semana estava apaixonado pelo processo de criação", diz Fausto.

O hobby virou obsessão. "Todo o tempo livre que eu tinha, eu dedicava a isso. Voltava da faculdade e ficava até as três da manhã mexendo no computador", afirma. Logo, as ilustrações se tornaram a principal atividade de Fausto, e já não havia tempo para a faculdade. Ele abandonou o curso no terceiro ano para se dedicar exclusivamente ao trabalho de designer, produzindo ilustrações para empresas de eventos e agências de publicidade. "Eu investia tanto tempo no design que aquilo tinha de virar minha profissão", diz. Ele chegou a entrar numa faculdade de design, mas também teve de abandonar o curso. "Na época eu já tinha filho e não consegui conciliar a faculdade com o trabalho", diz. As aulas de design acabavam ocupando um tempo que ele preferia dedicar ao design propriamente dito.

Mesmo quando já atuava profissionalmente na área Fausto manteve o hábito de se dedicar a trabalhos pessoais de design quando chegava em casa. As ilustrações eram, ao mesmo tempo, trabalho e lazer. Curiosamente, uma das grandes oportunidades de sua carreira surgiu graças a uma dessas ilustrações que ele fez por conta própria, de brincadeira. Fã de StarCraft, Fausto decidiu que seria divertido criar desenhos de personagens para o jogo. Ficou satisfeito com o resultado e postou a imagem num fórum de ilustrações na internet. Os usuários aplaudiram o trabalho. Teria ficado por aí, mas um dos visitantes do fórum trabalhava para a Blizzard, a empresa que desenvolve o game. As ilustrações de Fausto fizeram tanto sucesso dentro da empresa que lhe renderam uma proposta de emprego. Em 2003, Fausto se mudou de país e foi trabalhar na sede da Blizzard, na Califórnia. Criar personagens de jogos deixou de ser brincadeira.

Blizzard
O fuzileiro de StarCraft 2, uma das principais criações de Fausto para a Blizzard
O fuzileiro de StarCraft 2, uma das principais criações de Fausto para a Blizzard

A passagem de Fausto pela Blizzard durou nove anos e permitiu que ele trabalhasse em três dos jogos mais cultuados da empresa: Diablo 3, World of Warcraft e, claro, StarCraft 2. Se antes as ilustrações de StarCraft o inspiravam a passar madrugadas diante do computador, agora o seu trabalho era responsável por impressionar uma geração de novos ilustradores e fãs.

Como diretor de arte de uma das maiores empresas do mundo dos games, supervisionando designers que criavam personagens amados por milhões de jogadores, Fausto tinha um emprego que pouca gente no mundo pensaria em abandonar. Mas o trabalho na indústria de games fez com que ele gradualmente descobrisse uma outra paixão. Na Blizzard, o foco de seu trabalho eram as cinematics: aqueles trechos de games que funcionam como breves cenas de filmes, com qualidade gráfica muito superior à do jogo em si. Depois de se tornar um mestre dessas cenas curtas, enveredar para produções mais longas era natural e quase inevitável.

O salto para o cinema veio em 2012, com um convite para trabalhar no remake de "Robocop", dirigido por José Padilha. A essa altura, Fausto já era conhecido no mercado por sua aptidão para desenhar máquinas. Criou naves e veículos para o filme, além de reelaborar a armadura cinza do herói, com base no trabalho de um outro designer. A resposta dos produtores e diretores de arte foi muito positiva. A partir daí, o boca-a-boca de Hollywood foi suficiente para manter Fausto ocupado. David Scott, diretor de arte de "Robocop", falou sobre seu trabalho para um amigo, Ben Procter, também diretor de arte, que precisava de um bom concept artist para "Transformers 4". Fausto aceitou de bom grado a tarefa e se instalou no escritório de Michael Bay, trabalhando diretamente com o diretor para criar naves, robôs gigantes e até a mão de um alienígena.

Fausto de Martini
Uma das artes de Fausto para Transformers 4
Uma das artes de Fausto para Transformers 4

Scott também apresentou o trabalho de Fausto a Darren Gilford, responsável por recrutar os concept artists para elaborar as máquinas de "Star Wars 7". O contato deu resultado. Mais uma vez, agora numa escala muito maior, Fausto era convidado para dar vida à continuação de uma obra cultuada por muitos —incluindo ele mesmo. "Receber um convite desses é uma coisa surreal. 'Star Wars' fazia parte da minha infância. É o filme que transformou a ficção científica em mainstream, que deu origem a quase tudo o que existe no gênero hoje em dia", diz. "Eu me senti muito honrado, e ao mesmo tempo com uma responsabilidade muito grande. É um trabalho que influencia a vida muito gente. É fantástico poder dar uma pequena contribuição para esse universo. Ver o filme pronto foi uma emoção incrível."

Fausto de Martini
A armadura de Robocop também foi recriada por Fausto
A armadura de Robocop também foi recriada por Fausto

Pergunto a Fausto sobre a vida depois de "Star Wars". Ele se envolveria de alguma maneira nos próximos filmes da saga? Sentiria saudade dos dias em que recauchutava a frota de naves do lado negro da Força? Ele me diz que no momento não pensa no futuro de "Star Wars". Está se dedicando ao máximo a seu próximo trabalho. "'Star Wars' é um projeto que exige muito dos designers. Seria muito difícil trabalhar nele e no 'Avatar' ao mesmo tempo."

Sim, "Avatar".

Aos 40 anos, com apenas quatro de carreira cinematográfica, Fausto se tornou figurinha fácil em produções multimilionárias. Penso em perguntar a ele sobre os planos para as continuações do filme de James Cameron, a rotina de trabalho ao lado do diretor, as mudanças no universo de ficção científica que rendeu a maior bilheteria de todos os tempos. Logo me dou conta de que perguntar é inútil. Fausto não vai me dizer nada.

Ser um designer fora de série não é suficiente para conseguir trabalhar em produções como "Star Wars" e "Avatar". É preciso ser muito discreto. Os concept artists de filmes desse calibre lidam com segredos milionários. Há um sistema de segurança rigoroso para evitar vazamentos. Antes de começar o processo de criação, os designers envolvidos no filme levam seus computadores para o local da produção, e uma equipe é encarregada de instalar firewalls e antivírus. Depois disso, nenhum computador pode sair de lá até o fim do projeto.

Além da blindagem digital, os designers assinam contratos que os impedem de compartilhar qualquer informação sobre o filme com alguém que não esteja envolvido diretamente na produção. "Existe uma penalidade financeira muito grande para quem revela esse tipo de informação, e você também se queima no mercado. Por isso, sou muito cuidadoso", diz. "Você vê coisas sensacionais, que todo o mundo gostaria de saber, mas quando sai do trabalho precisa se esquecer de tudo. A tendência de deixar algo escapar é muito grande."

Sua técnica para deixar o trabalho de lado é a mesma de quando brincava de inventar personagens de StarCraft, mais de dez anos atrás: ao chegar em casa, depois de um dia desenvolvendo conceitos para grandes produções, Fausto liga o computador e dedica algumas horas ao design por diversão. Está criando seu próprio universo de ficção científica: uma série de e-books chamada Edge, que descreve o futuro após a vitória americana numa corrida de potências mundiais para militarizar o espaço. "É um ambiente no qual eu posso exercitar minha criatividade e também uma maneira de lidar com essa pressão para não contar segredos. A história é minha e posso revelar o que quiser", diz.

Fausto de Martini
Imagem de Edge, o projeto pessoal do artista
Imagem de Edge, o projeto pessoal do artista

Para Fausto, o sigilo em relação aos filmes em que trabalha é, também, uma questão de respeito aos seus criadores. "Aquele mundo de ficção que eles inventaram só pode ser revelado quando eles dizem que é a hora certa. É preciso ser cuidadoso para não acabar com a magia", afirma Fausto. "Só contei que tinha trabalhado em 'Star Wars' depois que saiu o primeiro trailer. Antes disso, se eu falasse que estava redesenhando o TIE fighter, estaria revelando que o TIE fighter apareceria no novo filme. Qualquer coisa que você diga pode revelar algo sobre a história".

Fausto também não fala muito sobre os diretores com quem trabalha. Diz que seria uma invasão da privacidade deles. É uma precaução compreensível num universo profissional que valoriza tanto o sigilo. Sobre James Cameron, diz apenas que ele compartilha a paixão de Fausto por criar conceitos que sejam realistas e pareçam funcionais. Segundo Fausto, nem todos os diretores são assim: alguns sabem que estão pedindo algo totalmente irreal, mas não se importam nem um pouco com isso. Ele não cita nomes, mas eu, você e o IMDb sabemos que ele trabalhou com Michael Bay.

Às vezes, o cuidado para não revelar detalhes do filme é tão grande que leva a situações um pouquinho absurdas. Sei que Fausto é especialista em criar máquinas e que ele está trabalhando no próximo "Avatar", mas ele não pode me dizer que está criando máquinas para o filme. "Preciso consultar o production designer", diz. "Não sei se posso falar disso. Qualquer coisa que eu disser pode dar uma pista sobre a história." Dois dias depois de nossa conversa, recebo um e-mail de Fausto com sua resposta oficial. Ele foi autorizado a dizer que está fazendo tech design: um termo propositalmente vago, que engloba qualquer tipo de tecnologia que possa aparecer num filme —de um relógio de pulso a um robô gigante devorador de sistemas solares. É o máximo de informação que terei.

Eu queria perguntar a ele sobre as novas máquinas de "Avatar" e o impacto que elas terão no confronto entre natureza e tecnologia que marcou o primeiro filme, mas obviamente ele não responderá a essa ou a qualquer outra pergunta. Terei de esperar até 2018, quando a primeira das continuações de "Avatar" finalmente será lançada. Quando isso acontecer, Fausto poderá falar um pouco sobre seu trabalho. Ele já terá deixado "Avatar" de lado há muito tempo e com certeza terá outros segredos para guardar.

Leia no site da VICE: O brasileiro que recriou o TIE Fighter para 'Star Wars: O Despertar da Força'


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