Folha de S. Paulo


Reedições de Cabrera Infante traçam união e ruptura com regime de Fidel

Entrevistei Míriam Gomez, a viúva do cubano Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), em sua casa em Londres, pouco depois da morte do escritor.

Naquele fevereiro gelado, a atriz, com quem o autor de "Três Tristes Tigres" havia se casado nos anos 1960, passava horas sentada, pensativa, diante dos caixotes de papelão cheios de anotações que o marido lhe deixara.

"Guillermo me deu todas as instruções para montar os livros que faltam, o problema não vai ser esse. E sim como vou me deparar com a vida dele que não conheci, como vou ver a mim mesma retratada aí, as outras mulheres que ele teve, e como vou ver Cuba, de onde saí tão machucada como ele?", me perguntava ela, apontando os cadernos.

O fato é que agora o trabalho está praticamente encerrado. Nesta semana, ela falou à Folha, por telefone: "Acho que ele queria que eu passasse o tempo todo pensando nele, e foi o que aconteceu, desde que morreu, vivo mexendo com as palavras e as memórias dele, até as que doem".

Foram dez anos em que Gómez organizou, editou e lançou as obras póstumas "A Ninfa Inconstante" (que saiu aqui pela Companhia das Letras), "Mapa Dibujado por un Espía", as coletâneas de crônicas para jornais e resenhas de cinema e uma nova edição de "Mea Cuba", agora ampliada.

Gómez ainda datilografou a novela autobiográfica que o marido começara nos anos 1960, em Bruxelas, e terminou dias antes de morrer: "Corpos Divinos", que a Companhia das Letras lança agora.

O livro carece da edição final do autor, mas é um importante testemunho de como Cabrera Infante viu os antecedentes da Revolução Cubana de 1959 e a transformação de Fidel Castro. Entre outros conta a viagem que fez, acompanhando o ditador, aos EUA e à América Latina (leia ao lado).

Corpos Divinos
Guillermo Cabrera Infante
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A obra completa do vencedor do Prêmio Cervantes (1997), agora editada em espanhol pela Galaxia Gutenberg, revela um autor de contradições. No novo volume de "Mea Cuba", acrescido do subtítulo "antes y después" e com mais de 1.300 páginas, não estão apenas os textos críticos a Fidel e à Revolução que marcaram as últimas quatro décadas de sua produção.

Com edição e introdução de Antoni Munné, foram acrescentados artigos escritos nos primeiros anos do movimento, quando Cabrera Infante foi um entusiasta e chegou a defender a perseguição de opositores ao regime.

"Seria estranho publicar isso sem contexto, mas no conjunto da obra faz sentido. Para Guillermo, a Revolução foi defensável até a invasão da Baía dos Porcos [em 1961, quando cubanos exilados auxiliados pelos EUA tentaram invadir a ilha]. Ele foi como jornalista. Quando viu que quem comandava o nosso lado eram os soviéticos, chegou em casa e chorou", conta Gómez.

O afastamento do projeto revolucionário, porém, não foi repentino. Primeiro, o autor foi para a embaixada cubana em Bruxelas, como adido cultural, mas os relatos que recebia da ilha eram angustiantes.

Em 1965, voltou para enterrar a mãe, e a Cuba que viu, cada vez mais autoritária e perseguindo os dissidentes, o desencantou totalmente.

"É dessa época um de seus melhores livros, 'Mapa Dibujado Por un Espía'", diz o também escritor cubano e colunista da Folha Leonardo Padura. "É o retrato de sua frustração e a perda de sua Cuba."

Para a viúva, foi o mais difícil de ler, não apenas pelo retrato negativo de seu país, mas porque Cabrera Infante conta aí que, nos meses que passou na ilha para o funeral da mãe –e ela permanecia na Europa–, o autor se apaixonou perdidamente por outra mulher.

"Me disseram para eu não ler e não incluir nas obras completas, mas isso seria uma traição. Guillermo sempre foi um homem de muitas mulheres. Doeu muito, mas li, enfrentei e disse: vamos publicar", conta Gómez.

Apesar da amargura com a Revolução e com o fato de ser proibido de voltar à ilha, ou mesmo de ser lido lá, Cabrera Infante alimentou a ideia de voltar para morrer em Cuba. Não foi possível. Aos amigos íntimos, dizia que sua biografia havia sido "escrita por Fidel. De certo modo, eu sou o anti-Fidel, ou o anti-Castro".

Sobre a atual reaproximação de Cuba com os EUA, Gómez diz lamentar que o marido não tenha visto isso. "É a derrota total do regime. Ele ia dar risada e constatar que estava certo, que a Revolução tinha ido por caminho errado."

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RAIO-X

  • Nascimento

Nasceu em 22 de abril de 1929, em Gibara, Cuba. Morreu em 21 de fevereiro de 2005, em Londres.

  • Principais livros

"Mea Cuba", "Três Tristes Tigres", "La Habana para un Infante Difunto". Venceu o Prêmio Cervantes em 1997.

  • Exílio

Viveu primeiro em Madri, depois em Londres, a partir dos anos 1960.

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ERRANTE Viagens do escritor cubano com Fidel

RIO DE JANEIRO

Foi ao Pão de Açúcar com um grupo, cortejou uma alemã, que o desdenhou, pediu a um taxista para ser levado a uma zona "red light" (de prostituição), mas não gostou e voltaram todos para Copacabana. "O Rio é uma verdadeira festa da natureza e do homem (...). Era o trópico amável."

BRASÍLIA

Almoçou com Juscelino Kubitschek e conversa com Oscar Niemeyer, que lhe conta os projetos da cidade, ainda não inaugurada oficialmente. Impressiona-se porque, enquanto o encontro se desenrolava numa sacada, lá embaixo um grupo de funcionários matavam cobras. "Brasília era o prospecto de uma cidade futura, mas agora os lugares atuais desses edifícios futuros ainda eram ermos solares."

SÃO PAULO

Cabrera Infante não gostou da arquitetura, mas foi a um show da cantora Maysa Matarazzo e quase teve uma aventura com três garotas num quarto de hotel. "São Paulo era uma cidade muito mais europeia do que o Rio e sem nenhuma de suas belezas naturais."

BUENOS AIRES

O escritor comenta, divertido, que os simpatizantes argentinos de Fidel não curtiram visitá-lo no hotel Alvear, um dos mais luxuosos, até hoje, da capital argentina. Já Cabrera Infante gostou da beleza das mulheres que viu ali e sobre a qual teceu longos comentários. Também em Buenos Aires, o autor presenciou um ataque de fúria de Fidel porque, enquanto isso, em Cuba, Che Guevara e Raúl Castro começaram a reforma agrária sem a presença dele

MONTEVIDÉU

Cabrera Infante diz ter sentido um alívio ao chegar à capital uruguaia, "depois do gigantismo de Buenos Aires e São Paulo", mas passou a maior parte do tempo perambulando e paquerando. "Na falta de uma calle Florida percorri a avenida defronte ao hotel até chegar a um café de estilo antigo, com mesas de mármore, como os que estavam desaparecendo em Havana, e me sentei sozinho para tomar um café."

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CORPOS DIVINOS
AUTOR Guillermo Cabrera Infante
TRADUÇÃO Josely Vianna Baptista
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 74,90 (624 págs.)


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